CARLOS HEITOR CONY
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Revivo algumas cenas de nossa infância. Toda a ternura antiga e não sabida vem à tona.
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ENCONTRO COM antigo colega do seminário, hoje padre, na porta da igreja. Eu esperava uma filha, e ele esperava a hora de fazer sua prédica sobre o mês de maio. Havia uma chuva miúda, o vento saía do túnel novo e varria as duas avenidas que vomitam automóveis vindos da cidade, em busca de Copacabana.
Lá dentro, na igreja, há calor e beatas. Alguém reza em voz alta, mas as buzinas dos carros soam mais fortes.
-Milagre?
-Não. Espero alguém.
Ele faz cara compreensiva, embora compreendendo outra coisa.
-Como vai essa ovelha tresmalhada?
-Já não sou tresmalhado, nem sequer sou ovelha.
-Isso depende de você. Olha, mais dia menos dia, você não aguenta mais.
Mudo de assunto:
-E o papa?
Há um brilho comovido nos olhos do padre.
-Você gosta dele?
A pergunta parece sem sentido, era claro, não tinha nada contra o papa.
-Pois olha, é um homem admirável.
E começa a falar. Do papa, descemos aos cardeais, depois aos bispos. Deu-me notícias que o nosso dom Jorge Marcos de Oliveira continuava o mesmo "Turcão" que conhecemos no seminário. Isso significa muita coisa de ternura e admiração.
"Turcão" era o camarada mais inteligente do seminário e do mundo. Bispo em Santo André, já falecido, tornou-se notável pelo seu zelo e pela sua competência pastoral. Vítima do noticiário dos jornais, dom Jorge muitas vezes foi apresentado como "moderno" demais, amigo demais dos trabalhadores. Esse "moderno" é justamente o "Turcão" do seminário.
Mas a sineta toca lá dentro e o padre entra.
-Vou falar sobre o mês de Maria. Na saída, voltamos a conversar.
-Posso ouvir?
-Não. Não aconselho. Vá esperar seu alguém.
O padre entra e eu vou atrás. Sento no banco mais escuro e triste. Beatas por todos os lados, lá no canto um homem idoso e curvado tosse com estrondo.
Acendem-se as luzes e o padre entra.
-Meus amigos, ia falar hoje sobre o mês de Maria. Mas encontrei lá fora um amigo de infância e mocidade, companheiro de ideal e de antigas lutas, hoje do outro lado da trincheira. Falar sobre o mês de maio seria ocioso para ele. Para vocês, outros padres falarão melhor do que eu sobre esse assunto. Pois falarei sobre um tema que tanto pode servir a vocês quanto a ele e a mim. A paz.
Não a paz dos guerreiros, a paz dos políticos, dos financistas. A paz paz, pacificamente instalada no coração e na angústia do homem. Lembrou a encíclica "Paz na Terra", não era qualquer paz que interessava para o homem.
E lembrou dois trechos do Evangelho. Quando Cristo diz: "Eu não vim trazer a paz, mas a guerra"; e quando, já ao fim de seus dias na Terra, faz sua grande oferta: "Eu vos dou a minha Paz".
Lá no fundo sinto o bruto orgulho de ter um amigo falando bonito e bem. Revivo algumas cenas de nossa infância, nossos estudos, o dia em que, juntos, começamos a estudar filosofia, quando apostamos tirar dez em ontologia. Toda a ternura antiga e não sabida vem à tona.
A prédica acaba, as beatas se ajoelham para a missa e eu saio trôpego, sem saber se devo ficar ou se devo partir imediatamente, infinitamente, em busca dos caminhos que escolhi sem ter preferido.
Lá fora, o vento que o Atlântico sopra vem por dentro dos túneis que engolem massas compactas de carros, as luzes vermelhas piscando histericamente na noite que desce sobre a cidade atrofiada de ossos e músculos cansados.
Na igreja, começa a missa, o mesmo rito antigo que Joyce colocou no pórtico de seu "Ulisses" e eu coloquei no pórtico de minha adolescência frustrada: "Subirei ao Altar de Deus". Que Deus? Que Altar? Há trincheiras ou, feitas as contas, não estamos todos do mesmo lado atirando contra o nada?
A chuva para. O mundo está lavado e um hálito fresco sobe do chão. Perto do carro, minha filha me espera. Meu carro será em breve um ponto histérico a mais, a ser devorado pela goela insaciável dos túneis e da vida. Olho para trás, o padre inicia o ofertório e se oferta. Paz.
Minha filha estende a mão e me chama para o chão, que nos traga sem ofertas, com lágrimas que começam a brotar em silêncio, secas no fundo e na treva.
FONTE: Folha online, 22/01/2010
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