Rubem Alves*
Você começou a ler essa crônica... É o que todo escritor deseja, que o leitor leia o que ele escreveu. Mas eu lhe peço — é a primeira vez que faço isto — que não leia. Que pare de ler para ver — ver essas árvores de tronco branco que ilustram essa crônica. Se eu as coloquei aí e disse que é mais importante vê-las que ler o que vou escrever sobre elas, é porque eu as amo. São partes de mim. Dentro da minha alma há um bosque de “Birches”, como esse que você está vendo.
Fui ao Google à procura do nome das “birches” em português. O “doutor sabe-tudo” disse que se trata de uma variedade da nossa “bétula”. Fiquei na mesma porque acho que nunca vi uma bétula. Talvez porque elas só cresçam nas montanhas frias do sul, onde a neve cai de vez em quando. Há belezas que precisam de muito frio para viver.
Eu as vi pela primeira vez quando estudei nos Estados Unidos pela primeira vez. Era o ano de 1963, mês de dezembro, algum dia entre Natal e Ano Bom. Eu fazia uma viagem num trem noturno, era Inverno e havia nevado. De manhã acordei no meu beliche, gozei por alguns minutos do sacolejo do trem e então abri a veneziana. O que vi foi um cenário que nunca tinha visto antes: os campos cobertos de neve, o trem resfolegando através de bosques de troncos brancos que não terminavam nunca e a luz do sol se filtrando tímida e inclinada entre as árvores. É fácil identificá-las: entre as árvores de tronco negro ou cinzento, elas são as únicas de tronco branco. Suas cascas tem uma peculiaridade: são cobertas por uma infinidade de “peles” delicadíssimas, tão delicadas, finas e flexíveis quanto peles humanas. Apaixonei-me por elas e tentei mesmo trazer suas sementes para o Brasil. Em vão. Os entendidos me explicaram que as sementes de certas árvores que crescem em regiões frias precisam passar meses hibernando e só acordam para a vida quando o degelo chega. Tentei imitar a natureza: pus as sementes no freezer, mas não adiantou. Elas não germinaram. O que consegui trazer para o Brazil foram alguns pequenos galhos brancos e alguns pedaços de casca que tenho guardados numa gaveta.
Há alguma coisa mágica nos “birches”. Algo neles que nos faz ver outras coisas. O fato é que eles seduzem pintores e poetas. O quadro que ilustra essa crônica é obra do pintor Welliver, que os coloca em muitas das suas pinturas.
Os “birches” têm uma peculiaridade; eles tem galhos longos e flexíveis que se curvam até o chão dobrados pelo peso da neve que neles se acumula até que ela, a neve, derretida pelo calor, escorregue dos galhos curvados onde estava acumulada, libertando-os para a sua posição natural. Os meninos, valendo-se dessa flexibilidade dos “birches”, agarram-se ao tronco vertical, vão subindo, o tronco se curva, dobra-se em arco até voltar ao chão. Os meninos, então, soltam o tronco que volta à sua posição ereta, vertical, apontando para os céus. E aí a brincadeira começa novamente, indefinidamente...
Um dos poemas mais famosos de Robert Frost é uma meditação metafísica sobre os “birches”, em especial os “birches” curvados pelos meninos. Metafísica é uma palavra incomum, filosófica. Mas eu explico: metafísica é um jeito de pensar à procura de funduras.
“Quando eu vejo as ‘birches’”, ele diz, “curvadas para a direita e para a esquerda no meio das árvores retas e escuras, eu gosto de imaginar que algum garoto andou balançando nelas.” O que há é uma árvore sozinha. Mas os olhos do poeta vêem um menino pendurado num dos seus galhos, balançando para lá e para cá...
E então, depois de uma longa meditação — descrevendo a blocos de neve que escorregam dos galhos curvados e se espatifam no chão ele diz “você pensaria que a catedral interna dos céus havia se estilhaçado” — ele chega à sua conclusão sobre a vida e a morte:
(Como os meninos que sobem nas “birches”)
“Eu gostaria de fugir da terra,
mas só por um tempinho
Para voltar a ela e começar tudo de novo,
Porque a terra é o lugar certo para amar.
Não conheço melhor lugar...
Eu gostaria de subir numa árvore de “birch”
Na direção dos céus, até o momento em que
a árvore não agüentasse mais
E se curvasse colocando-me de novo no chão...
Isso seria bom: subir na direção dos céus
e de novo voltar...
Nada melhor que simplesmente ser um
balançador de birches...”
Eu também gostaria de voltar a essa terra,
O lugar certo para amar...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 24/01/2010
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