domingo, 31 de janeiro de 2010

Será mesmo o fim da influência?

Brad Delong e Stephen Cohen*

Dono de uma economia enferma e
enredado num inescapável abraço com a China,
os EUA tendem a ser cada vez menos os inspiradores de novas tendências culturais
ou de padrões de comportamento

Ao longo de mais de um quarto de século, todos os países alimentaram o sonho neoliberal: tentaram restringir a influência do Estado às suas competências básicas, ou seja, a promoção da eficiência econômica, a integração econômica global e o crescimento, e reduzir ao máximo a burocracia, a busca desenfreada de lucros e a corrupção. Procuraram ainda privatizar os ativos estatais e a participação do Estado em companhias de grande porte nos principais setores da economia.

Mas agora estão despertando: o sonho neoliberal está no fim. Para compreender os motivos, teremos de voltar à metade do século passado. O advento da 2ª Guerra Mundial fez com que os recursos que ainda restavam à Grã-Bretanha se esgotassem muito rapidamente. Franklin Roosevelt governava um país isolacionista, que ele pretendia convencer a entrar na guerra contra Hitler da maneira mais rápida e completa possível. Mas parte da estratégia de Roosevelt consistia em quebrar a Grã-Bretanha antes que o dinheiro dos contribuintes americanos fosse empregado no conflito. Depois que a Grã-Bretanha quebrou, os Estados Unidos finalmente se apressaram a ajudar sua aliada. Mas enquanto nos equipávamos para resgatá-la, tiramos do povo britânico todo o dinheiro que ele tinha, e quando a guerra acabou, o dinheiro tinha passado para as mãos dos EUA. Os empréstimos feitos pelos EUA à Grã-Bretanha seriam pagos em dólares, e não em libras. E as importações britânicas tiveram de ser racionadas até meados da década de 50.

Será que os EUA serão sugados a esse ponto? Não. Nós não estamos envolvidos numa guerra total. Não produzimos apenas 1.200 calorias diárias de alimentos para cada cidadão. Ainda somos a maior economia do mundo. Os EUA são uma potência tecnológica, possuem imensos recursos e ainda são o centro das finanças mundiais. Continuam sendo a única superpotência militar do mundo, o que quer que isso possa significar.

Os EUA, no entanto, estão perdendo seu dinheiro. Estão profundamente endividados com outros países, e seu endividamento crescerá a cada ano que passa, até onde as previsões podem alcançar. Não serão sugados como eles sugaram a Grã-Bretanha, mas sofrerão sérios apertos.

Quando os EUA tinham o dinheiro, só o usavam para dar atenção a outros governos quando lhes convinha e para garantir que os outros governos se voltassem para os EUA, mesmo que não estivessem dispostos. Os EUA financiaram e empreenderam "mudanças de regime" em países menores para derrubar governos que aparentemente haviam incorrido num erro grave. Para isso, usaram a alavanca do dinheiro de que dispunham exclusivamente para o bem maior do mundo. Quem está com o dinheiro agora? Como o usará? A quanto monta? Enormes estoques de obrigações do governo americano estão nos tesouros de países asiáticos. O Japão tem cerca de US$ 1 trilhão em reservas (o que corresponde a cerca de US$ 9 mil para cada família americana). Taiwan, Hong Kong e Cingapura em conjunto detêm algo como US$ 500 bilhões. A Coreia tem mais US$ 200 bilhões. Mas a maior detentora de obrigações americanas é a China, com cerca de US$ 2,5 trilhões de "reservas", a parte principal em títulos da dívida dos EUA. Os EUA devem quantias inimagináveis de dinheiro aos seus credores: cerca de US$ 20 mil por família americana, três quartos do PIB da China, o que torna seu pagamento rápido impossível. A Bíblia ensina: "O que toma emprestado é servo do que empresta". Mas o ônus da dívida externa dos EUA pode ser mais bem explicado pela anedota muitas vezes ouvida em Wall Street: "Se você deve US$ 1 milhão a um banco, o banco fisgou você; se você deve US$ 1 bilhão, você fisgou o banco".

Nenhum dos dois pode se desvencilhar do outro: estão presos, nós estamos presos. O desequilíbrio econômico entre EUA e China obrigou as duas potências a um abraço excessivamente íntimo e não particularmente desejado, que Lawrence Summers certa vez definiu como o equilíbrio financeiro de terror. Mas tudo para o bem: as duas potências devem aprender a trabalhar em parceria, e não apenas nas questões econômicas - o aquecimento global e a ordem global também precisam de uma cooperação sino-americana positiva, e essas são questões muito mais importantes no longo prazo. A parceria sino-americana, na gestão da complexa bagunça de sua assimétrica codependência econômica, pode constituir um bom começo para tratar de problemas de equilíbrio e de ordem mundial totalmente insensatos. Não temos nenhuma escolha aceitável senão nos esforçarmos, e isso precisará de muita boa vontade de ambas as partes. Como o dinheiro altera as relações de poder, os EUA não só estão se tornando dependentes como não são mais independentes. Essa é a mudança mais importante. E a China não está mais indefesa e intimidada diante da superpotência hegemônica; ela a tem em suas mãos.

Nos últimos 30 anos, os EUA implantaram com sucesso uma visão de mundo de mercados sem restrições e de países "com restrições": expandir o âmbito dos mercados e reduzir o campo de ação de outras instituições, principalmente os governos. Respaldaram esse conceito com dinheiro e, enquanto ele não fracassou, essa perspectiva americana foi adotada de bom grado por um número cada vez maior de indivíduos e governos em todo o planeta. O poder brando - não o poderia militar, não o mero poder do dinheiro, mas a capacidade de suscitar aceitação e emulação - foi um componente vital do predomínio internacional dos EUA. Ele permitiu amenizar o caráter abrasivo do poderio militar e econômico e fez com que os detentores desse poder se sentissem satisfeitos.

Evidentemente, dinheiro é poder. E como, durante cerca de 110 anos, os EUA detinham o dinheiro - sólido, legítimo, seguro e duradouro -, no mundo todo as pessoas queriam ser como os americanos: bem-sucedidas, modernas, livres, eficientes, democráticas, capazes de ascender socialmente, esguias, limpas, poderosas e, obviamente, ricas. O dinheiro confere poder a uma nação, não apenas o poder de mandar ou influir no comportamento de outras nações. E quando o dinheiro se acumula ao longo do tempo faz com que o poder propague ideias, preocupações, modas, normas, interesses, formas de entretenimento e maneiras de se mostrar e se comportar que brotam de sua cultura. Esses elementos penetram profundamente em outras culturas e passam a fazer parte da vida de todos os dias. É um poder exuberante, que não precisa ser exercido voluntariamente ou mesmo conscientemente, e sem custos extraordinários.

Enquanto os EUA saíam da 1ª Guerra Mundial como a maior potência e donos de gigantescas quantidades de dinheiro, o jazz americano foi conquistando a Europa, mais rapidamente do que a Ford ou a Kodak. Mais tarde, principalmente depois da 2ª Guerra, os europeus aplaudiram com entusiasmo a invasão dos filmes americanos. A maioria dos europeus conheceu a América por meio do cinema; entretanto, duas gerações de europeus privilegiados viajaram para os EUA para ver o país com os próprios olhos (muitos patrocinados pelo Departamento de Estado), admirar os arranha-céus de Nova York e as casas das pessoas comuns com carrões reluzentes à porta, máquinas de lavar, televisores e os sorrisos das grandes mulheres americanas, alimentadas com leite e carne, refeitos nos consultórios dos ortodontistas.

O domínio cultural americano continuou se expandindo. Adolescentes de todo o mundo agora se vestem de maneira uniforme com estilos lançados em primeira mão pelos adolescentes americanos e adotaram até mesmo sua linguagem corporal. Comem pela rua. Os iPods, criados pelos americanos e fabricados na Ásia, enchem suas cabeças com a mesma música estridente; enviam suas mensagens instantâneas, usam blogs e tweetters. E a língua inglesa - que não é absolutamente uma invenção da cultura americana - não é apenas a língua internacional, mas também a segunda língua de uma enorme população global. Uma língua contém mais do que palavras e gramática; ela expressa uma forma e um conteúdo cultural.

Os EUA serão cada vez menos os inspiradores de novas tendências culturais ou padrões de comportamento globais. Em primeiro lugar porque agora o dinheiro está nas mãos dos outros; mas também porque, embora os EUA continuem um país particularmente moderno, o moderno deixou de ser especificamente americano; está se tornando rapidamente semiglobal, e, se não envelheceu, pelo menos chegou à maturidade. Não é preciso sair da China para ver arranha-céus; há mais arranha-céus em Xangai do que em Nova York, mais novos, mais altos e mais ousados. O estrangeiro que chega agora ao aeroporto Kennedy de Nova York ainda fica boquiaberto ao longo do caminho até Manhattan, mas os motivos são outros: o lixo e as favelas forram a Via Expressa Van Wyck, Via Jamaica e Queens, onde a ferrugem e as pichações decoram os velhos trens do metrô e as pontes; as ruas são malconservadas; não há trens adequados para a cidade - e muito menos um transporte limpo e rápido como em Hong Kong e Xangai. Hollywood não tem mais uma meganarrativa herdada e incorporada - a exibição da vida moderna em todas as suas bizarras formas cotidianas: o modo de andar e falar das mulheres, as casas, o crime, a sedução, o sexo, as cozinhas, o modo de criar os filhos, de fazer sucesso, excursões, tribunais, shopping centers, escolas, hospitais, universidades e edifícios de escritórios - o mundo, talvez, do futuro de vocês.

A cultura criada pelos EUA e exportada em seus filmes não desapareceu; nem está desaparecendo. Simplesmente se universalizou e agora está aberta para uma imensa gama de contribuições. O que é seguramente excelente para a cultura americana e mundial, pela abertura para novas ideias, talentos e energias. Assim, a cultura local americana se enriquece graças às várias importações, do futebol ao sushi, sem falar nos ativos Ph.Ds. em ciências biológicas e da matéria.

Os EUA continuarão sendo indubitavelmente líderes como potência cultural, mas há uma diferença entre liderar em termos culturais e exercer um fácil predomínio cultural, quase natural. Nossas universidades de pesquisa são motivo de inveja e servem de modelo para o mundo inteiro. O mesmo acontece com as nossas companhias de alta tecnologia, biotecnologia e nanotecnologia, como as do Vale do Silício, com sua mão de obra multinacional, multirracial, pertencente a uma única cultura, composta por pessoas brilhantes, ambiciosas, de formação superior e extremamente motivadas. Há também uma poderosa força cultural emergente, representada em seu mais alto grau por Barack e Michelle Obama: os EUA ainda poderão criar as novas meganarrativas que sucederão ao mundo da modernidade, capazes de conquistar os corações, os temores, os anseios e as energias do mundo. Mas por mais criativos que seus cidadãos se tornem, como no campo do poder econômico e político, é improvável que os EUA continuem sendo a potência cultural hegemônica, a fonte esmagadoramente predominante do pensamento cultural.
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*Brad Delong é economista e Stephen Cohen é professor de planejamento regional, ambos da Universidade da Califórnia. Eles escreveram este artigo originalmente para a revista Foreign Policy
Fonte: Site: http://www.controversia.com.br/index.php

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