Roberto Romano*
“Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. Assim falou Jarbas Passarinho na reunião em que foi assinado o AI-5. Mas também escutamos, em data mais recente: “quem está na oposição pode fazer bravatas, porque não tem o comprometimento de governar, mas à frente do governo deve-se ter um comportamento realista” (Luis Inácio da Silva). Os dois políticos afirmam que, uma vez no poder, ninguém deve se preocupar com valores éticos. “Salus populi suprema lex esto”*. Temos aí o núcleo duro da razão de Estado, cujo nome, a partir do século 19, é “realismo”.
A razão de Estado vem do século 16. O realismo a traduz na era do nacionalismo europeu. O desejo de aumentar ao infinito as potências européias foi batizado por August Ludwig von Rochau. Ele distingue a mera teoria da política prática (Realpolitik). A ética exige princípios para governar os povos. Mas segundo a Realpolitik o poder é alheio aos valores. Sujeitar o poder a leis seria irracional, porque o forte não pode ser dirigido pelos fracos. “Nem princípios, tratados ou idéias unirão as forças alemãs esfaceladas, mas apenas uma força superior que devore o resto” (Rochau).
Essa doutrina foi aceita em muitas partes da Europa. “Dominar”, diz o mesmo autor, “significa exercitar o poder. Só exercita o poder quem possui poder. Tal relação imediata entre poder e dominação constitui a verdade primeira de toda política. Ela é a chave de toda história”. Que seja lido o livro de Rochau Grundsätze der Realpolitik, angewendet auf die staatlichen Zustände
Deutschlands (1853). Ali foi escrita, pela primeira vez, a palavra Realpolitik. A literatura sobre o nascimento daquele termo não é numerosa. Entre os analistas cito Friedrich Meinecke: A idéia da raison d´État na história dos tempos modernos e, recentemente, Otto Pflanze, Bismarck and the Development of Germany: The Period of Unification, 1815-1871.
Tanto a direita brasileira, que hoje protesta com todos os pulmões contra o plano sobre direitos humanos (ancorada em alguns itens), quanto a esquerda, foram nutridas com o leite apodrecido de doutrinas similares à de Rochau, inimigas dos direitos humanos. O realismo amamenta todos os que, tendo sido um dia oposição, chegando ao poder renegam valores ou escrúpulos. As duas ditaduras que moldaram o país no século 20, a de Vargas e a de 1964, baniram do vocabulário a reverência aos direitos humanos. Sobral Pinto foi obrigado a citar a lei de proteção dos animais para defender um perseguido político da esquerda. Necessidade idêntica sentiram os dignos advogados que defenderam presos políticos, sobretudo depois do AI-5.
Enquanto o realismo imperar nas hostes políticas nacionais, de esquerda e direita, projetos sobre direitos humanos serão apenas causa de guerra política na conquista ou conservação do poder. Note-se o tom ambiguo: a direita se levanta contra possíveis atentados à propriedade, mas apoia a política econômica do governo. Disse Delfim Netto sobre tais seres: “eles mamam nas tetas do governo”. Mas querem exclusividade. O plano dos direitos humanos, por sua vez, leva dirigentes governamentais a nele incluir matérias fiscais e controle da imprensa. Mas o alvo seria aprimorar os costumes dos que operam em nome do Estado ou lideram a sociedade. O apelido do realismo é esperteza que ignora valores e direitos. Ela dominou a política de Bismarck e orientou os partidos totalitários. O resultado? Duas guerras mundiais, seguidas pelas matanças que desgraçam o mundo. A esperteza orientou os ditadores, mas também dirigiu a esquerda realista. Louvemos os direitos humanos. Sigamos o exemplo dos Arns. Paulo denunciou, sob saraivadas de calúnias, a tortura contra os presos políticos. Zilda defendeu a vida infantil e a velhice. Se neles nos espelharmos, a violenta batalha de hoje, que tende a piorar o convívio no país, se transformará em diálogo pacificador. O poder pelo poder só traz infelicidade aos povos. Tal lição ainda precisa ser assimilada no Brasil.
* "Seja o bem-estar do povo a lei suprema".[Cícero, De Legibus 3.3.8 / Divisa do Estado de Missouri, EUA]*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp.
FONTE: Correio Popular online, 20/01/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário