sábado, 30 de janeiro de 2010

Importância da Verdade

Dom Eugenio Sales*
 Há momentos na vida que nos convidam a um exame de nossas atitudes, uma verificação interior sob o olhar de Deus. Algo diferente do que costumamos fazer cada dia. Assim como alguém que, ao longo de uma viagem, para por instantes, observa o percurso andado, consulta o itinerário, julga o esforço despendido, avalia as reservas, alonga a vista para o futuro.
Constatar a realidade é sempre útil. O princípio de cada ano nos oferece uma oportunidade para examinar nossa atuação no período que termina a aperfeiçoar a missão de discípulos de Cristo e membros de uma nação.
Em dois campos essas reflexões são necessárias: o civil e o religioso, pois somos cidadãos de duas pátrias, e ambas estão intimamente relacionadas entre si. O critério básico, entretanto, é um só, o Evangelho, e é a ele que se deve recorrer como parâmetro e como iluminador nos julgamentos e decisões.
O que fizemos pelo Brasil em 2009, se dele nos servimos ou se por ele nos sacrificamos, é uma das perguntas fundamentais.
Abre-se então um largo espectro a iluminar cada ação e a inquirir as intenções. A resposta será dada pela consciência de cada um diante do Senhor.
Em nome de nossa Fé, a Igreja da qual somos parte integrante, exige de nós, antes de tudo, apesar das contingências humanas, uma fidelidade inalterada.
Essa interpretação se bifurca, embora de uma só fonte promanem os erros.
Há quem cultue o passado de modo imobilista e os que só aspiram às novidades. Ambos ferem a comunhão através da infidelidade aos designados pelo Salvador para orientar o Povo de Deus e aos quais os irmãos foram confiados. O papa e os bispos, estes enquanto em união com ele, são, como expressão da Igreja, “a coluna e o sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15).
Nesse exame encontraremos vários óbices à autenticidade no relacionamento civil e religioso.
Um deles, com profundas repercussões, é a oposição à Verdade.
Esta virtude, marca essencial do caráter bem formado, indispensável à prática religiosa e à vida cívica, vê-se repetidas vezes repelida, ferida ou destruída.
Apela-se para o anonimato, mesmo com boas intenções, a fim de se denunciar erros e até para ajudar a corrigi-los. Entretanto, a falta de identificação reduz a nada um informe.
Com razão há os que se negam a tomar conhecimento de sua existência, pois é leitura vedada o que está acobertado por uma falsa identidade.
O verdadeiro é o que está de acordo com a realidade objetiva, e também pode ser definido como o encontro com o Redentor, manifestado por nossa obediência à doutrina revelada.
Os fundamentos dessa virtude estão no próprio Deus.
Cristo é a Verdade. A pergunta um tanto cínica de Pilatos “Que é a Verdade?” (Jo 18,38) parece que se repete em muitos lábios cristãos. E a resposta foi muda, mas de uma extraordinária eloquência e eficácia.
Ela era ele, ali presente.
Ouve-se uma notícia e, antes de se verificar sua veracidade, é logo transmitida a outrem, podendo-se com isso ofender gravemente aos homens e ao Senhor. Por vezes, o mal é disseminado dessa forma e é irreparável. Infelizmente, cada um de nós pode confirmar a frequência dessa enfermidade moral.
Deturpa-se o fato ou elaborase uma intenção não existente para servir a interesses pessoais, de grupos e ideologias.
Hoje, a rapidez das comunicações amplia desmedidamente o raio destruidor da mentira, do falso testemunho, da insinuação malévola.
Atribuem-se, por vezes, inclusive à autoridade civil ou religiosa, ações ou objetivos absolutamente inexistentes ou parcialmente verdadeiros. Neste caso, a meia verdade vai além da simples calúnia, pois, apresentando uma deformação de algo real, fá-lo mais facilmente crível.
Impressiona a quantidade dessas e outras manifestações de falta de caráter e espírito cristão. Profunda a extensão desse mal e alto seu poder destruidor.
Elas são praticadas até por pessoas aparentemente boas e que se julgam tementes a Deus. Esquecem que toda a vida espiritual se edifica em alicerces humanos, elevados à ordem sobrenatural. Construir a piedade sem a base de um caráter ilibado que se manifesta pelo amor à verdade, é fazê-lo sobre a areia. O resultado nos é revelado por São Mateus (7,26-27): “E foi grande a sua queda”.
O cristão, como parte do Corpo Místico de Cristo, é destinado a “dar testemunho da verdade” (Jo 18,37) e a estar permanentemente sob sua influência.
Cada um de nós é cooperador da Verdade. Somente assim alguém pode se considerar colaborador do Evangelho.
Para cultivá-la exige-se um amor pelo verdadeiro, pelo real, pelo objetivo, que põe acima dos interesses pessoais julgamentos apressados, pruridos da língua e fraqueza na prática da caridade. Exige-se ainda o apreço ao valor da justiça e do bem comum. Sem a Verdade, a relação entre as criaturas se enfraquece, e toda uma série de obstáculos se antepõe à boa ordem na sociedade civil e religiosa.
Ela é o vínculo indispensável à união e ao entendimento que todos almejamos.
O Pai dá sua graça. Nós devemos responder com nosso esforço. Servir à Verdade pode significar dificuldades e até graves sacrifícios.
Seremos, entretanto, bem recompensados pelo Senhor.
Homens de hoje constroem assim o amanhã.
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*ARCEBISPO EMÉRITO DO RIO
FONTE: Jornal do Brasil online - Sábado, 30 de Janeiro de 2010

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