sábado, 23 de janeiro de 2010

O maior espetáculo da terra

Aldo Mellender de Araújo*



Professor de Oxford, Dawkins é um dos principais autores de divulgação científica

Em seu livro mais recente, Richard Dawkins explica a teoria da evolução e rebate críticas de criacionistas

Publicado em 2009, para associar-se às homenagens aos 200 anos de nascimento de Charles Darwin, O Maior Espetáculo da Terra: As Evidências da Evolução (boa tradução de Laura Teixeira Motta, com pequenos deslizes), último livro de Richard Dawkins, procura fornecer ao leitor uma série de evidências a favor da evolução biológica. No capítulo 1, Apenas uma teoria?, ele já anuncia um dos seus alvos prediletos, os defensores do criacionismo. Ele sugere que se imagine um professor de história romana e de latim, ávido por transmitir seu entusiasmo pelo mundo antigo. E depois que se imagine que, ao final da aula, alguém tente persuadir os colegas da turma de que nunca existiu um Império Romano e que o mundo todo surgiu pouco antes das gerações atuais. De fato, os criacionistas, por maiores que sejam as evidências de que o mundo dos seres vivos tenha se modificado ao longo de milhões de anos e que continua se modificando, persistem em negá-las.
Apropriadamente, Dawkins inicia sua exposição por um esclarecimento do que seja teoria e fato, uma vez que um dos argumentos dos detratores da evolução biológica é que ela é “apenas” uma teoria. Não é a primeira vez que alguém tenta esclarecer o significado destes dois termos: Stephen Jay Gould também o fez em um dos seus livros de divulgação. É interessante que os criacionistas não critiquem as teorias da física ou da química, mas vociferem quanto à teoria da evolução biológica. Os valores epistêmicos daquelas não diferem dos da teoria da evolução.
Os capítulos seguintes (o livro tem 13 capítulos, além de um apêndice, das notas de cada capítulo, bibliografia e índice remissivo) procuram mostrar diferentes exemplos de organismos que evoluíram, isto é, que sofreram modificações, desde a proverbial couve, passando pelas diferentes raças de cães, baleias, tartarugas e, claro, pelos humanos. Como se sabe, o primeiro capítulo da obra magna de Darwin, A Origem das Espécies, discute as diferentes formas de animais e plantas domesticadas, das raças de pombos, no que ele intitulou Variação sob Domesticação. A ligação lógica é, se os humanos conseguiram, no tempo histórico, profundas mudanças nas raças de animais e plantas domésticas, o que não poderia a natureza fazer com um tempo infinitamente longo à disposição. Ao mesmo tempo em que Dawkins apresenta os exemplos, também procura mostrar que a teoria da evolução é preditiva; tal é o caso da descoberta de uma mariposa com uma longa probóscide (estrutura bucal, espiralada, popularmente conhecida como tromba das borboletas e mariposas), capaz de captar o néctar de uma orquídea de Madagascar. Darwin havia estudado a orquídea, que tem uma fina e longa estrutura que contém néctar e fizera a previsão de que seria possível encontrar um inseto especializado, uma mariposa, capaz de se alimentar do néctar daquela orquídea. Após a sua morte, um naturalista coletou a mariposa em Madagascar; foi nomeada como Xanthopan morgani praedicta (na ilustração acima), o último nome em alusão à previsão feita por Darwin.
O leitor certamente já deve ter lido ou ouvido a expressão “elo perdido”; pois esse é o tema do capítulo 6, que é um dos pontos altos do livro. Novamente, o alvo de Dawkins é o criacionismo: “Os criacionistas são tremendamente apaixonados pelo registro fóssil porque foram ensinados (uns pelos outros) a repetir vezes sem conta o mantra de que ele é cheio de ‘lacunas’: ‘Mostre-me os seus intermediários !’ Imaginam ingenuamente que essas ‘lacunas’ sejam um estorvo para os evolucionistas.” Na verdade a expressão “elo perdido” se generalizou, como se de fato os fósseis pudessem apresentar formas intermediárias entre duas espécies atuais como, por exemplo, entre os humanos e os chimpanzés. Muitos dos leitores deverão ter assistido, em meados do ano passado, a um documentário em um canal pago de televisão, sobre “Ida, o elo perdido”, que se referia a um achado de um macaco fóssil muito bem conservado, com cerca de 47 milhões de anos e que estaria na base da linhagem dos primatas. A mídia tratou de romancear o achado, que nada tem de proximidade com a linhagem humana, pois é um ancestral provável dos grandes macacos atuais, tais como os chimpanzés e gorilas.
Para quem deseja especificamente um texto sobre evolução humana, indico o capítulo 7 do livro. Depois de um exame rápido sobre a história dos primeiros descobrimentos de fósseis hominídeos (é bom lembrar que na época em que Darwin escreveu a obra A Origem do Homem e a Seleção Sexual, 1871, o único fóssil disponível era o de Neandertal), ele passa a tratar dos achados mais recentes. Neste capítulo Dawkins transcreve um debate transmitido em um canal de TV da Inglaterra, onde sua interlocutora negava peremptoriamente a existência de fósseis hominídeos (e de um modo geral, qualquer evidência) que testemunhasse as modificações pelas quais passou a nossa linhagem. Aliás, sobre os contestadores da evolução, concordo totalmente com Dawkins quando diz que grande parte deles não possui formação de biólogo ou equivalente, sendo na maioria dos casos, pessoas leigas. Estabelece-se, portanto, uma assimetria de conhecimentos em relação ao assunto debatido; mas o mais importante é a absoluta falta de interesse dos críticos de conhecer e aceitar as múltiplas evidências da evolução.
Uma das deficiências dos livros de Richard Dawkins tem sido a falta de tratamento sobre a origem das “novidades evolutivas”. Este é um tema consagrado, antigo, na literatura sobre evolução. A solução deste problema só começou a ser esboçada nos últimos 15 anos, com o surgimento da biologia evolutiva do desenvolvimento, também conhecida pela sigla em inglês “evo-devo”. O que são “novidades evolutivas” ? São aquelas características (digamos, quanto à morfologia e fisiologia) que surgem nos organismos, ao longo do tempo geológico e que não existiam antes. Alguns exemplos clássicos, são a origem das asas nos vertebrados e a origem das asas nos insetos. A maior parte dos livros de Dawkins tem tratado da questão do aperfeiçoamento de características adaptativas (por exemplo, a origem das teias das aranhas, admiravelmente tratada em livro anterior, A Escalada do Monte Improvável, 1998); em outras palavras, Dawkins enfatiza exageradamente o papel da seleção natural como agente da evolução. Um leitor desavisado poderá pensar que a seleção natural “cria” as diferentes formas dos seres vivos; na realidade ela “aperfeiçoa” algo que tem uma utilidade em termos de sobrevivência e reprodução de um organismo qualquer em um dado ambiente. A seleção natural é oportunista: ela desenvolve estruturas, comportamentos, fisiologia, moléculas, que melhor funcionem ao longo das gerações, mas ela necessita de algo que já exista, mesmo em uma forma rudimentar. Pois um tratamento deste tema, ainda que tímido, é dado no capítulo 8. Digo tímido porque mesmo dedicando um capítulo ao tema da biologia evolutiva do desenvolvimento, ele o faz para destacar mais ainda o papel da seleção natural. Um tópico complementar ao deste capítulo seria o do papel do ambiente na evolução, algo que Dawkins parece não aceitar, definitivamente. Finalizando, a obra O Maior Espetáculo da Terra merece ser lida com atenção; seu autor é um admirável escritor e debatedor, mas fique atento, pois há muito mais na evolução do que seleção natural.
 _________________________________________________
* Professor titular do Departamento de Genética, Instituto de Biociências, UFRGS.
FONTE: ZH  Cultura online, 23/01/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário