sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Segunda classe

DAVID COIMBRA*



A solidariedade é um sentimento de segunda classe. Num mundo ideal, a solidariedade seria sempre subalterna ao que realmente importa: a Justiça.
A Justiça.
É quase um deboche: tudo de sublime que o homem faz na vida o faz à procura da Justiça no mundo, e a Justiça no mundo não existe.
Todos os filósofos, Sócrates, Espinosa, Kant, Schopenhauer, Freud, todos eles, só o que fizeram foi trabalhar para descobrir como funciona a Justiça no mundo. Construíram catedrais de pensamento, e por meio delas explicaram o movimento das engrenagens de algo que é só ficção.
Um deles, Schopenhauer, alcançou a verdade: concluiu que o mundo é injusto. E é.
A religião resolveu a questão. Admite que durante a vida não há Justiça e promete que ela será feita depois da morte. Uma saída genial, porque ninguém até hoje conseguiu cobrar o não cumprimento da promessa, embora também seja verdade que ninguém o confirmou.
O Schopenhauer das religiões é o budismo. Na sua essência, o budismo é realisticamente pessimista, conforma-se com o vazio e com a inação. Talvez esteja certo.
De qualquer forma, tanto o budismo quanto Schopenhauer tentam achar algum conforto na reflexão, e, ora, conforto não há.
A literatura também. Toda a literatura se estrutura na ideia ilógica de que a Justiça existe. Até atividades mais superficiais do intelecto humano, como o jornalismo e o Direito, só o que fazem é a busca pela Justiça.
Um drama eterno da Civilização. E insolúvel. Porque o homem tenta – organiza-se em sociedades, formula leis, constrói filosofias, tem fé em deuses, conta a sua própria história, tece fabulações e poemas, monta sistemas de pensamento, o homem passa a sua existência neste Vale de Lágrimas acreditando que caminha na direção da Justiça, e então ocorre um cataclismo como o do Haiti, e pessoas morrem aos milhares e as que sobrevivem são mutiladas e crianças tornam-se órfãs sem que para isso haja qualquer motivo. Há quem diga que seja a reação da Natureza vilipendiada pelo homem. Bobagem. Há 250 anos a Revolução Industrial nem havia começado e Lisboa foi destruída por um terremoto não muito diferente do que assolou Porto Príncipe. Tragédias naturais acontecem desde sempre sem a necessidade da ajuda do homem.
Tanta gente morta, tanta gente viva que sofre, e tudo sem razão. Porque não há razão. Não há Justiça no mundo.
O que sobra? Aí está: a solidariedade.
A solidariedade, como o pensamento dos filósofos, a fé das religiões e as leis do Direito, a solidariedade é um consolo. Hoje, o mundo inteiro se move pela dor do Haiti. Não é uma solução, talvez seja bem pouco, quase nada, mas, num mundo sem Justiça, é o que há.

*Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 22/01/2010

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