quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Uma definição adequada da categoria ideologia

Bruno Lima Rocha*



A temática ligada à definição de ideologia e o uso ou não desta categoria é fruto de largas polêmicas, tanto nos círculos acadêmicos como em partidos e organizações políticas. Neste trabalho de difusão científica (fruto de tese de doutoramento em ciência política) venho abordando o tema, partindo já de uma definição da interdependência da esfera Ideológica como própria do mundo das representações, dos símbolos, das significações, das interpretações do mundo da vida e todo o universo ao que diz respeito da memória, da identidade e do sentido de pertencimento. Já em textos anteriores afirmamos, através do texto de Althusser (apud Coelho, 1968), ser o inconsciente um objeto próprio, único e transversal ao sistema de dominação e da estrutura de classes. Portanto, seus frutos, não podem ser “jogo de espelhos e nem falsificação de realidade material” porque a formação do homem, de hominídeo em produto civilizatório humanizado e humanizante passa pela construção dos significados.

Repito o que já foi dito e reafirmo a posição não para desconsiderar a polêmica a respeito da categoria ideologia. Reconheço os debates e os embates, mas me atenho às definições aqui expostas. Entrar nesse tema com profundidade é mais uma janela aberta a partir deste esforço de criação epistemológica de base ontológica libertária, a tese de doutoramento, fruto de árduo trabalho teórico-político e somado ao diálogo realizado através das obrigações profissionais e de ofício acadêmico.

Voltando ao foco deste breve artigo, a definição recente que mais se aproximou daquilo que este trabalho e seu autor têm como expressão ideológica, eu a encontrei em um texto da argentina Susana Murillo (2008).

Em seu trabalho, equivalente ao Capítulo 1 “Acerca de La Ideología”, do livro Colonizar el dolor. La interpelación ideológica del Banco Mundial en América Latina. El caso argentino desde Blumberg a Cromañon (2008), a autora conterrânea de gente da estirpe de Emilio Uriondo e Mauricio Malamud nos traz uma boa definição do conceito de ideologia. Nesta, ela nega a idéia de “falsa consciência” e tampouco estabelece uma distinção ontológica entre a ordem econômica e o ordenamento político. Isto vai ao encontro da definição de Foucault (apud Murillo, 2008), quando este afirma que “as práticas sociais constroem objetos, conceitos, técnicas e formas de subjetividade”. Vou ao encontro desta definição e faço acordo com Murillo quando a mesma afirma que “desde essas perspectivas, a ideologia caracterizada como falsa consciência nada aportaria; sobretudo porque esta caracterização se baseia sobre a distinção fictícia dentre a super-estrutura jurídico-política e a infra-estrutura econômica”.

É justamente esta crítica e a afirmação da interdependência e não da metáfora de super e infra-estrutura que me aproxima de seu conceito de ideologia. Neste conceito, Murillo afirma que a valorização do mesmo tem como fim o avanço teórico na compreensão de diversos processos. São eles (de forma resumida):

1) vislumbrar de que modo o ser que nasce de um ventre humano se hominiza, não somente por razões biológicas mas também por razões culturais;

2) compreender por que no processo de hominização, os mecanismos positivos ou produtivos de poder, desenvolvidos em formas de dispositivos, se constituem em ideais subjetivos;

3) ajuda a evitar o cinismo (Zizek apud Murillo 2008) que, mesmo sabendo da dominação de umas forças sociais sobre outras (grifo meu), por omissão naturaliza este processo de domínio;

4) analisar como os mecanismos de poder são espaços de luta que transformam e são transformados pelas subjetividades individuais e coletivas (também constituídas dentro destes espaços) em diversos momentos da história;

5) aporta luz sobre a compreensão de processos onde, por vezes, grupos humanos em situações de extrema vulnerabilidade, aderem a propostas de caráter autoritário;

6) permite revisar uma noção de “subjetividade” onde esta aparece como produto “passivo”, isto para repensá-la, as subjetividades, como um produto ativo e construtivo, algo que se faz também a partir das práticas sociais.

Esta larga definição em defesa do conceito de ideologia e da importância de seu desenvolvimento teórico me parece mais que satisfatória. Isto porque aproxima a ciência política neste trabalho praticada da noção de que como seres humanos, nós estamos além de uma suposta dicotomia entre “espírito” e “corpo equivalendo a uma máquina”. A própria noção foucaultiana de corpo, de corpos, é algo que se constitui desde a mirada e a apreciação históricas. A esfera ideológica é parte constitutiva de uma carne humana que se faz sujeito, mas não de forma transparente ou necessariamente “consciente”, como pleno de razão pura. É um processo simultâneo, compartimentado onde toda a condição de existência acarreta algum grau, maior ou menor, de imaginário, que é constitutivo da existência mesma.

Aqui apresento a Interdependência de Três Esferas onde o político-jurídico-militar aparece como lugar de síntese, mas não como determinante, e tampouco o é determinante a esfera de trocas e produções, como é a economia. Uma boa definição do papel da Esfera Ideologia (conceito ampliado) se encontra na obra de Castells (2003, El Poder de La Identidad), especificamente no capítulo 1: Paraísos comunales: identidad y sentido em la sociedad red, mais especificamente no sub-tópico “La umma contra el yahilíia: El fundamentalismo islâmico” (pp. 42-51), quando o autor espanhol afirma que “o resultado histórico de uma ideologia não se mede em votos ou pastas ministeriais, ou nem sequer em apoio popular organizado, mas sim em sua capacidade de modificar crenças, desafiar os valores dominantes e alterar as relações de poder globais...”

Mesmo estando Castells se referindo ao chamado fundamentalismo islâmico, ou integrismo (termo de minha preferência pois me parece de maior rigor), entendo que o exemplo conceitual acima é perfeitamente análogo às construções de identidades latino-americanas. Assim, a definição do poder de uma ideologia aportado por Castells, nos remete à sua própria condição de existir como categoria. Isto porque o câmbio profundo de mentalidades não pode ser fruto de uma relação passiva e de subordinação às demais relações e práticas sociais.

Estas formas de disputa e contra-peso da esfera, conceito e categoria determinada e própria chamada ideologia ocupa um lugar central no desenvolvimento de qualquer modelo de organização política. Este peso redobra em importância e gravitação, a ponto de deformar o campo e referenciar aos demais, (seguindo o conceito de Bourdieu 1997, p.60), e sua aplicação pode significar um fator decisivo na relação conflitiva entre a radicalização democrática e a limitante e limitadora ordem constituída.

Bibliografia utilizada:

ALTHUSSER, Louis, Freud e Lacan. 3º capítulo da 3ª parte (Psicanálise) do livro de COELHO, Eduardo Prado, Estruturalismo, antologia de textos teóricos, pp. 229-255. Rio de Janeiro, Martins Fontes, 1968.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.

CASTELLS, Manuel El Poder de La Identidad. Ciudad de México, Siglo XXI, 2003

MURILLO, Susana. Capítulo I. Acerca de La ideología. Em publicação: Colonizar el dolor. La interpelación ideológica del Banco Mundial en América Latina. El caso argentino desde Blumberg a Cromañon. MURILLO, Susana CLACSO: Conselho Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, abril de 2008. ISBN: 978-987-1183-90-6. Documento eletrônico encontrado em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/murillo/01Murillo.pdf arquivo consultado em 08 de agosto de 2008.
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*Bruno Lima Rocha, cientista político com doutorado e mestrado pela UFRGS, jornalista formado na UFRJ; docente de comunicação e pesquisador 1 da Unisinos; membro do Grupo Cepos e editor do portar Estratégia & Análise.
FONTE: IHU/Unisinos, 21/01/2010

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