PASQUALE CIPRO NETO
Os chatos de plantão talvez já estejam com
os olhos voltados para os dicionários
("A palavra "topia" existe?")
EM BELO TEXTO, publicado na quinta-feira passada pela Folha, Frei Betto exaltou os inquestionáveis feitos e virtudes de Zilda Arns, levada de nós pelo terremoto que atingiu o pobre Haiti.
Na capa da edição, a Folha destacou o texto de Frei Betto com esta passagem: "Há os que primeiro agem e depois buscam recursos e há os que jamais passam da utopia à topia. Zilda Arns, médica, fez o milagre de multiplicar os pães".
No texto propriamente dito, as palavras eram um pouco diferentes, mas lá estava a genial passagem "da utopia à topia". Os chatos de plantão talvez já estejam com os olhos voltados para os dicionários ("Mas a palavra "topia" existe?").
Isso me lembrou um episódio ocorrido em 1999, no teatro Jorge Amado, na minha querida Salvador. Nesse ano, tive o prazer de apresentar, mensalmente, um programa da série "O Baianês", que no ano seguinte foi levada ao ar pela TV Educativa da Bahia e, para todo o país, pela TV Cultura. Num dos programas, contei com a participação de Carlinhos Brown, autor da bela canção "Mares de Ti", em cuja letra se encontra esta passagem: "Porque é você que sabe aonde surfir o mais bonito do magnífico...".
A plateia podia fazer perguntas.
Quase indignado, um dos presentes perguntou-me se existia o verbo "surfir", talvez querendo ou esperando que eu dissesse que, se os dicionários não registram, a tal palavra não existe. "Pois ele não acabou de usar?", disse eu. "Sim", respondeu o rapaz. "Então ela existe", completei. E a plateia veio abaixo.
Poesia não é relatório, não é laudo técnico, não é tese científica etc. E artigo com tom de depoimento, como o de Frei Betto, também não é (não é relatório etc.). Ao cunhar a passagem "da utopia à topia", Frei Betto deve ter feito muita gente pensar a respeito e, como convém nessas horas, ir atrás do fato e tentar entender o que ele quis dizer, em vez de se preocupar com bobagens como "Essa palavra existe?", "Ele pode usar?" ou algo do gênero.
Os dicionários não registram a palavra "topia"; registram (alguns) o elemento de composição "-topia" (do grego "tópos", que significa "lugar"). Esse elemento é o mesmo que se encontra, por exemplo, em "topografia" (descrição exata e minuciosa de um lugar) ou "toponímia" (estudo dos topônimos, ou seja, dos nomes de lugares -países, cidades, regiões, continentes etc.).
A palavra "utopia" foi criada pelo escritor inglês Thomas Morus, que com ela batizou uma ilha imaginária, em que havia um sistema sociopolítico ideal, perfeito. De acordo com o "Houaiss", Morus latinizou o prefixo negativo grego "ou-", que transformou em "u", e o agregou ao elemento "topos", acrescido do sufixo "-ia". E o que significa "utopia"? Ao pé da letra, significa "nenhum lugar"; na prática, vem a ser a idealização de algo que, na realidade, não existe em "nenhum lugar".
Ao dizer que "há os que primeiro agem e depois buscam recursos e há os que jamais passam da utopia à topia", nosso Frei Betto quis dizer que a inesquecível doutora Zilda passou da utopia à topia, ou seja, "lugarizou" seu sonho. E foram (e são e serão) muitos os lugares em que se materializou a ação de Zilda Arns, membro de uma família que tem e terá lugar de destaque na história do Brasil e do mundo. É isso.
FONTE: Folha online, 21/01/2010
inculta@uol.com.br
Ótimo texto!
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