terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O deus mau

LUIZ FELIPE PONDÉ*

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Para muitos dos gnósticos, a criação é fruto de um deus mau que nos tortura

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O THRILLER "Contatos de 4º Grau", com Milla Jovovich, vale a pena ser visto. Com roteiro eficiente e boa construção de personagens, o filme mistura gravações da personagem real (uma psicóloga) interpretada pela atriz com ficção construída a partir de seu material de pesquisa em consultório. Trata-se da reconstrução de eventos misteriosos do ano 2000 numa pequena cidade no Alasca. O filme discute o velho tema das visitas de extraterrestres e sequestros de seres humanos. Um contato de quarto grau significa contatos com extraterrestres que envolvem sequestros de seres humanos.

Tenho algum conhecimento do tema. Não sou um iniciado no contato com extraterrestres "cinzentos de cabeça grande" nem nunca vi luzes estranhas no céu. Mas devido a uma pesquisa sobre mídia e novas crenças com alunos de comunicação, desenvolvida desde 1997, já recebi inúmeros iniciados em aula. Entre eles, ufólogos e pessoas que já foram abduzidas. Pelo menos relatam isso. E pasme, caro leitor: já conversei com vários extraterrestres. Pelo menos assim se apresentam. São seres que dizem assumir a forma humana para melhor desenvolver sua pesquisa entre nós. Muitas delas poderiam estar sentadas do seu lado no metrô. Discorrem tranquilamente sobre seus planetas de origem.

Alguns traços se repetem. Apesar de confirmarem que existem malvados entre eles, os malvados nunca "foram à minha aula". Os bons têm missões relacionadas à evolução moral dos seres humanos em assuntos como solidariedade social e interplanetária ou cuidados com o ambiente e com excessos tecnológicos. Um tema também recorrente é a questão da espiritualidade. Essas crenças misturam extraterrestres e divindades variadas, de egípcias a astecas ou maias. Normalmente essa espiritualidade apresenta valores morais comuns a outras formas de espiritualidade: bondade, crença numa vida melhor após a morte, preocupação com a alimentação ou responsabilidade com o universo. Chama a atenção no filme o tipo específico de espiritualidade que esses eventos no Alasca narram. Segundo as gravações das entrevistas com os pacientes da psicóloga (e com ela mesma, que também é vítima de abduções), os extraterrestres do Alasca falavam sumeriano (uma língua muito antiga), traduzido por um especialista, hoje professor em uma renomada universidade canadense. Mas o mais importante é o conteúdo das falas. Esse conteúdo marca uma grande diferença entre a maioria esmagadora de relatos de eventos como esse e o caso do Alasca.

A espiritualidade deles é agressiva e leva suas testemunhas ao desespero existencial e, em alguns casos, a suicídios e homicídios. A psicóloga diz que o afeto causado por eles é de total "hopelessness" (negação absoluta de qualquer esperança). Eles falam pela boca de suas vítimas, assim como se fosse uma possessão demoníaca. Numa das visitas noturnas à casa da psicóloga, um deles afirma: "Sou deus". Que tipo de deus causa "hopelessness"? Aí adentramos uma questão importante da história das religiões antigas. Trata-se do fenômeno chamado "gnosticismo". O termo é tardio (século 18), mas o fenômeno data, no mínimo, do primeiro século da Era Cristã, e foi objeto de interesse de gente como o grande psiquiatra Jung. Temos muitos textos de época que atestam o fenômeno. Para muitos desses gnósticos, a criação é fruto de um deus mau que nos tortura. As provas são inúmeras: para viver, matamos, sabemos que vamos morrer e isso nos corrói, a injustiça sempre vence e os virtuosos nos parecem bobos, enfim, a consciência é uma câmara de horrores.

Na versão cristã (alguns textos são de cristãos da época), Cristo é visto como alguém enviado pelo "Pai silencioso" (outro deus) que não criou o mundo, mas que salva alguns de nós que despertam para o fato de que não há qualquer esperança no mundo porque seu criador é perverso. O filósofo Hans Jonas (século 20), estudioso do fenômeno, via no gnosticismo a marca da constante niilista no ser humano, que se repete, segundo ele, em escolas como o existencialismo e a tragédia. Nesse sentido, a espiritualidade dos "ETs" do Alasca está em sintonia com velhas crenças humanas, mas raras nas "religiões de ETs" mais comuns. Ao contrário de reforçar a crença na felicidade, sufoca suas vítimas numa consciência insuportável da inviabilidade de tudo o que respira.
*Teólogo. Escritor. Colunista da Folha
FONTE: Folha online, 25/01/2010

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