Publicado em 1846, 'Gente pobre' é o primeiro livro de Dostoiévski
RIO - Com apenas 24 anos, Fiodor Dostoiévski pediu afastamento do departamento de engenharia do Exército, em São Petersburgo, para se dedicar exclusivamente à literatura. Só e sem recursos, o jovem escreveu seu primeiro romance, Gente pobre. Se não tivesse abandonado a carreira militar imposta por seu pai, um gênio da literatura russa jamais teria surgido.
Publicado em 1846, Gente pobre – que ganha nova tradução de Fátima Bianchi no Brasil – marca o início da obra de Dostoiévski que, desde seu primeiro romance, já assume a capacidade extraordinária de dar vida intensa a suas ideias. O poeta russo Nikolai Niekrássov (1821-1878) e o escritor Dmítri Grigoróvitch, ao terminar a leitura de Gente pobre, saíram anunciando o surgimento de um novo Gógol. Vissarión Bielínski, principal crítico da época, declarou que a obra revelava “mistérios e caracteres da Rússia com os quais ninguém até então havia sequer sonhado”.
– Dizer, naquele momento, que havia surgido um novo Gógol era o mesmo que dizer que havia surgido um novo gênio – afirma a tradutora Fátima Bianchi. – Em nenhum dos grandes escritores russos da época, Niekrásov, Turguêniev, Herzen e Gontcharóv, foram depositadas tantas esperanças como no autor de Gente pobre para o desenvolvimento da literatura russa.
Gente pobre é um romance concebido na forma de correspondência entre os dois personagens centrais que vão revelando aos poucos a sua existência, com toda complexidade, e a partir de sua própria compreensão. Como o título indica, o tema de defesa da dignidade das pessoas pobres encontra eco em todo o romance, através da imagem interior de um homem da mais baixa extração social.
Makar Diévuchikin é um conselheiro que ocupa um modesto cargo de copista em uma repartição pública de São Petersburgo. Varvara Dobrosiélova é uma jovem que sai da adolescência direto para as garras de uma alcoviteira. Em suas cartas, Diévuchkin luta para salvar Varvara e, ao mesmo tempo, preservar o amor próprio e o senso de dignidade em meio a humilhações constantes.
Na troca de correspondências entre os personagens é introduzida uma série de elementos externos que conferem à narrativa um tom de romance social, uma tentativa de retratar a vida tal como ela era e suas contradições.
– Ao ler os manuscritos de Gente pobre, Bielínski considerou que essa era a primeira tentativa de se fazer um romance social na Rússia – diz Fátima. – Para ele, essa obra surgia como um dos primeiros testemunhos do amadurecimento da tendência realista de orientação gogoliana, também chamada de escola natural.
A escola natural russa procurava afirmar o valor do homem comum, mostrando-o de forma objetiva, com toda a limitação de suas capacidades inventivas. A obra literária deveria expressar uma crítica social. Absorvido por essa nova tendência, Dostoiévski apresenta em Gente pobre as temáticas da vida de São Petersburgo explorada nas novelas de Gógol.
– O livro é um diálogo com Gógol – afirma o estudioso da cultura russa Boris Schnaiderman, que também assina a orelha da edição brasileira. – Mas isso não quer dizer que Dostoiévski seguiu o mesmo caminho de Gógol. Ele chega a superá-lo ao conseguir imprimir à problemática social uma maior afetividade, uma humanidade absorvente.
No século 19, o chamado ensaio fisiológico francês estava repercutindo na Rússia. E, mesmo ligado a esse movimento, Dostoiévski se diferencia dos demais ao acrescentar a sua narrativa, na opinião de Boris Schnaiderman, um toque maior de carinho humano.
Para Fátima Bianchi, a obra representa um marco no romance social russo, ao apresentar o pobre sob uma nova perspectiva.
– A representação dos personagens de Gente pobre vai ao encontro dos anseios da crítica de então, que se queixava a situação lastimável dos funcionários pobres de São Petersburgo, pessoas com ocupações e destinos parecidos, que se transformavam em materiais banais, vulgares, da literatura humorística corrente – explica a tradutora. – Nem mesmo O capote, de Gógol, havia conseguido vencer essa torrente de zombaria em cima dos funcionários pobres.
Sobre a relação com Gógol, Dostoiévski escreveu: “Encontram em mim uma corrente original nova, que se constitui pelo fato de eu agir pela análise, e não pela síntese, isto é, vou ao fundo, mas, desmontando em átomos, busco o todo. Já Gógol pega diretamente o todo, e por isso não é tão profundo quanto eu”.
Mas logo o jovem escritor se desvencilha do gênero da escola natural quando recebe crítica negativas de seu segundo trabalho, O duplo, publicado um ano depois de sua estreia como romancista. Novamente a decepção proporciona a tentativa de novas incursões literárias. Em A senhoria, escrito também em 1846, o funcionário pobre de consciência limitada dá lugar a um tipo psicologicamente mais complexo: um jovem intelectual e idealista. O sonhador romântico já traz em si, ainda que em germe, as características marcantes de personagens semelhantes de Dostoiévski que aparecerão depois. Entre eles, o homem de Memórias do subsolo e o Raskólnikov da obra-prima Crime e castigo.
– Gente pobre é um livro extraordinário. Já é possível encontrar neste primeiro romance toda a genialidade de Dostoiévski – observa Boris Schnaiderman.
Reportagem de Taynée Mendes, Jornal do Brasil
FONTE JB online - 15/01/2010
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