sábado, 16 de janeiro de 2010

Nenhum de nós vive sobre um chão estável



Escrevi por algum tempo artigos científicos para um jornal da Califórnia, onde aprendi a ver o chão debaixo dos meus pés como uma coisa viva. Ele está permanentemente em movimento, esticando-se, tremendo, balançando; é uma película fina e enrugada de um planeta cujos músculos e ossos contraem-se continuamente debaixo dela.

Na Califórnia, habitantes e cientistas vivem num compasso de espera, tentando com apreensão prever quando a falha de San Andreas despertará, provocando outra convulsão geológica como a que destruiu San Francisco, em 1906. Em um congresso de sismólogos do qual participei, os organizadores estenderam uma faixa na entrada da sala de conferências com uma citação atribuída ao historiador Will Durant: "A civilização existe graças ao consentimento geológico, sujeito a mudanças sem aviso prévio". Sempre gostei da frase, que refuta nossa presunção natural, nosso pressuposto de que somos inevitavelmente senhores desta pequena esfera em um dos menores sistemas solares da galáxia.

Escrevendo à esposa Ariel, Durant voltou a tratar deste tema em The Lessons of History (As lições da História), inspirando-se dessa vez numa analogia bíblica: "Para o olho geológico, toda a superfície da terra é uma forma fluida, e o homem se movimenta sobre ela com passos tão inseguros quanto Pedro caminhando sobre as águas para encontrar Cristo". Mais uma vez, Durant tocou o ponto certo porque um terremoto devastador como o que arrasou o Haiti na terça-feira traz consigo uma sensação épica, homérica, bíblica, de que o mundo está errado.

Com certeza, devíamos poder confiar na rocha. Um país como o Haiti, já suficientemente castigado pelas circunstâncias, deveria poder encontrar de algum modo a segurança do chão sólido, embora o nosso planeta prove reiteradamente que não é assim. O terremoto que em 2008 sacudiu a Província de Sichuan, na China oriental, deixou mais de 88 mil entre mortos e desaparecidos. O da Indonésia, em 2006, matou mais de 6 mil pessoas.

O Haiti situa-se ao longo de uma falha de fratura entre duas grandes placas da crosta terrestre. O termo falha não implica um erro, nem sugere uma fenda estacionária na crosta da terra. Ao contrário, em geologia o termo "falha" implica movimento. De baixo da fina camada externa sobre a qual ancoramos nossas vidas, este planeta testa continuamente o vigor dos seus músculos. O magma quente que está lá em baixo, os minerais e os metais liquefeitos impelidos num movimento circular ao redor do centro da terra, conspiram para manter a superfície em movimento. As placas da crosta que cobrem a superfície do planeta como um grande quebra-cabeça rochoso, empurram-se reciprocamente por cima e por baixo. As grandes placas continental e oceânica da crosta estão sempre em movimento, atritando-se e rearrumando a base sobre a qual transcorre a nossa vida. O deslocamento é demasiado lento para chamar a nossa atenção, salvo quando torna-se imprevisível. As falhas de ruptura tendem a chocar-se enquanto deslizam umas contra as outras, uma seção denteada contra a outra. No entanto, continuam em atrito lento e contínuo, impelido incessantemente por aquela corrente subterrânea e acabam quebrando o impasse, provocando as reverberações de um sismo. Fazia mais de 100 anos, desde que a Falha de Enriquillo-Plantain Garden, adjacente ao Haiti, fez isso. A terra leva tempo para preparar uma catástrofe. Vivemos num planeta ardiloso, instável, inquieto, e ainda imprevisível.

O artigo é de Deborah Blum e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 16-01-2010.

Fonte: IHU/Unisinos online, 16/01/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário