WALTER CENEVIVA*
Como ocorria nos discursos de Fidel,
nos pronunciamentos de Mussolini,
o decreto do Executivo é redundante
O DISCUTIDO decreto presidencial, contendo normas genericamente vinculadas aos direitos humanos, compôs 25 (vinte e cinco) diretrizes, que tomaram 87 (oitenta e sete) páginas, em letras pequenas (corpo 10), correspondendo a 30.651 (trinta mil, seiscentas e cinquenta e uma palavras), que consumiram 220.949 (duzentos e vinte mil, novecentos e quarenta e nove) toques de computador, com espaços. Os números também vão por extenso, porque o leitor até poderia pensar em erro de digitação.
Mal comparando, esse número de palavras e toques seria quase suficiente para escrever 70 colunas iguais a esta, ou seja, comentários em 70 sábados seguidos.
O decreto tem coisas boas e más. Ressente-se, porém, de um defeito insuportável. Como acontecia nos discursos de Fidel, nos pronunciamentos de Mussolini e nas grandes manifestações de líderes totalitários, é redundante, com infindáveis reiterações.
Mostra que seus autores preferiram afastar-se das melhores mensagens do pensamento humano, compactas e convincentes, sem palavras inúteis, até ao comporem direitos de todos os tempos. Exemplos: os mandamentos da lei de Deus e o pai nosso, no campo das religiões; o discurso de Lincoln em Gettysburg e a convocação de Churchill ao povo inglês, na Segunda Guerra; o princípio fundamental de Lavoisier (na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma) nas ciências ou as súmulas jurídico-filosóficas de Aristóteles (direito é atribuir a cada um o que é seu).
As mais de 30 mil palavras se destinam a afastar o maior número possível de leitores ou levar os persistentes a se concentrarem em segmentos específicos de seu particular interesse. São duas linhas de técnica aplicada quando se aumenta a narrativa além do necessário. Faltou ao presidente Lula um bom editor de texto.
Pense o leitor que se trata de um decreto, elemento subsidiário do processo legislativo (Constituição, artigo 59). É aberto à atuação do presidente da República, enquanto chefe do Executivo, para as finalidades indicadas no art. 83, inciso 6.
Por ser ato de um dos Poderes republicanos, o decreto deve obedecer a preceitos próprios da elaboração legislativa, sem divagações político-publicitárias, que o presidente da República não viu, ao assinar sem ler, segundo disse, confiando em seus auxiliares.
A aplicação do decreto e sua interpretação serão feitas a contar dos princípios fundamentais da Constituição (artigo 4º), que incluem a prevalência dos direitos humanos. Sua aferição final caberá aos nossos juízes e tribunais. A prevalência vem confirmada em tratados e convenções internacionais, cuja defesa em juízo cabe ao procurador-geral da República (artigo 109, parágrafo 5º, da carta magna).
Ao que se sabe, a Presidência da República introduzirá alterações no decreto que, pronto e acabado, será material da coluna. As regras de interpretação exigem a espera das retificações para o diálogo dos sábados, sobre a terra firme do texto final, de modo a tornar útil a discussão dos assuntos considerados e as opções possíveis.
O enfoque de cada tema tentará separar o joio do trigo, para distinguir qualidades e defeitos, mesmo que se mantenha a redação longa e o decreto continue rebarbativo.
*Walter Ceneviva (c. 1928) é um advogado, jurista e professor universitário brasileiro.
Foi professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e assina a coluna "Letras Jurídicas" no jornal Folha de S. Paulo
Fonte: Folha online, 16/01/2010
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