sábado, 16 de janeiro de 2010

Apenas um cérebro


O historiador inglês Tony Judt fala sobre a doença que o prende a um corpo sem forças para respirarHá poucas semanas o historiador inglês Tony Judy fez uma palestra na Universidade de Nova York (NYU), onde é professor residente. Mais de mil pessoas assistiram, e poucas saíram desapontadas. O que ouviram foi o Tony Judt clássico: a conferência, um elogio às virtudes positivas da social-democracia, era tão erudita quanto se poderia esperar do autor de Uma História do Pós-Guerra (Objetiva), seu retrato épico da Europa desde 1945, e tão politicamente aguçada quanto seus escritos controversos sobre o Oriente Médio. Contudo, o Judt que eles viram naquela noite não era o que esperavam. Ele rodou pelo palco em uma cadeira de rodas motorizada, enrolado em um cobertor de modo que tudo o que se podia ver eram seu pescoço e sua cabeça, à qual havia sido ajustado um tubo respiratório que parecia uma embalagem Tupperware.

– Na última vez em que me viram em público, eu saltava ao redor do palco cheio de vigor e energia – diz Judt – Agora, o que eles viram foi um tetraplégico com plástico no rosto.

Estamos sentados em seu gabinete repleto de estantes em um apartamento da Universidade de Nova York fora de Washington Square. Faz um calor sufocante no aposento, por razões que só mais tarde se tornarão claras. Judt está sentado em sua cadeira motorizada, vestindo uma camiseta preta e calças largas. Tem aquele mesmo tubo plástico ajustado ao rosto, bem como um microfone que amplifica sua voz por meio de um alto-falante.

Há pouco mais de um ano, Judt era, pela própria descrição, um “homem de 61 anos, saudável, em ótima forma, muito independente, viajante e esportista”. Então, em setembro de 2008, foi diagnosticado com uma forma rara de doença neurológica, uma enfermidade degenerativa e progressiva que leva à morte as células que controlam o movimento. Sua condição específica é a Esclerose Lateral Amiotrófica, conhecida como Doença de Lou Gehrig depois que o lendário arremessador dos Yankees de Nova York morreu em decorrência dela, em 1941.

A doença devastou Judt com velocidade surpreendente. Em dezembro do mesmo ano, havia perdido o uso das mãos. Em março, estava em uma cadeira de rodas. Em maio, estava usando o “tubo facial idiota”, como ele define, porque os músculos de seu diafragma não tinham mais força suficiente para realizar os movimentos de fole que induzem à respiração.

O caráter repentino da catástrofe teria deixado muitas pessoas paralisadas não só física, mas emocionalmente. Judt reagiu diferente. Ele embarcou em uma fascinante, embora involuntária, jornada intelectual – uma marcha forçada da mente.

– Fui obrigado a pensar sobre o que significava ser eu, ser apenas um cérebro. O “caniço pensante” de Pascal realmente captura bem a questão, porque sou apenas um monte de músculos mortos que pensa.

Se é assim, em que ele pensa?

– Eu me descobri pensando sobre aquilo que é central em mim. Quais os principais lugares, influências, eventos, prazeres e raivas, pontos de virada e assim por diante. Estou tentando compreender o que significam agora que fui reduzido à essência de quem sou.

O produto dessa investigação existencial é uma série de ensaios que Judt escreveu – ou melhor, ditou – para o New York Review of Books e que serão publicados nos próximos dois meses. O primeiro deles, Night (no ar no endereço eletrônico http://www.nybooks.com/articles/23531) aborda a doença. Judt submete sua deterioração ao mesmo escrutínio minucioso e inclemente com que já abordou o conflito Israel-Palestina. A ausência de qualquer autocomiseração torna a leitura apavorante.

Tomados em conjunto, os nove ensaios iluminam as muitas contradições formativas que dão a Judt uma voz tão distinta. Ele é um judeu sem religião que já questionou a legitimidade do Estado de Israel; um cidadão americano naturalizado que é um crítico consistente dos Estados Unidos; um homem de esquerda que não se filia a nenhuma ideologia esquerdista. Ele é, para usar uma frase que Judt usou para Edward Said, um cosmopolita desenraizado.

– Sou visto hoje fora da Universidade de Nova York como a caricatura de um comunista judeu; e dentro da universidade como um típico elitista branco liberal à moda antiga. Gosto disso. Estar no limite entre ambos é confortável.

Um dos ensaios, Kibutz, explora sua relação tumultuada com Israel. Entre os 15 e os 21 anos, ele desenvolveu uma paixão quase obsessiva pelo sionismo de esquerda, para depois se desencantar dele abruptamente. Por sugestão de seus pais, foi para um kibutz israelense e abraçou seus dogmas com o zelo de um recém-convertido. Com o passar do tempo, passou a se ressentir das restrições e a desgostar da presunção conservadora da comunidade, sentimento que se intensificou quando passou algum tempo com o exército israelense nas Colinas de Golan logo após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. A experiência inteira, diz, o imunizou contra a impensável ideologia do Sionismo, padrão que veio a repetir com o Marxismo.

Sua preocupação intelectual atual é com o papel do Estado nas sociedades ocidentais – o assunto de sua palestra na NYU. Sua tese é de que, durante os últimos 40 anos, as democracias ocidentais esqueceram as virtudes positivas da ação coletiva. No fim da conferência, ele ficou chocado com o número de jovens que vieram até ele expressando a perplexidade com ideias que nunca haviam ouvido.

– Esta é a segunda geração de pessoas que não conseguem imaginar mudanças a não ser em suas próprias vidas, que não têm nenhuma noção de bens ou serviços públicos coletivos, que são apenas indivíduos isolados esforçando-se desesperadamente para melhorar a si próprios acima de todos os demais.

Judt pretende agora, no tempo que lhe resta, dedicar-se a escrever um livro para ajudar jovens a pensar coletivamente outra vez.

– Pode realmente ter um impacto se eu fizer direito. Algo que faça a próxima geração ver que há um caminho para pensar a política que não aquele a que estamos habituados. Eu me preocupo com isso e acho que posso fazê-lo.

Judt já está trabalhando no livro, usando a mesma técnica mnemônica que empregou para seus ensaios. Durante a noite, ele constrói em sua mente um Palácio Chinês da Memória – ou, em seu caso, um modesto chalé suiço – e em cada um dos quartos imaginários coloca um parágrafo ou um tema da peça que está compondo. No dia seguinte, ele relembra todos os quartos em sequência, e descarrega seu conteúdo ditando-o para seu assistente.

– Algumas pessoas me disseram: “Tony, você tem sorte. Mais do que qualquer um, vive a vida da mente. Poderia ter sido muito pior.”

Ao que ele responde:

– Alô? Você é do planeta Zurg? Esta é uma das piores doenças da Terra. É estar em uma prisão que encolhe seis polegadas a cada dia.

É verdade que ele tem uma força mental extraordinária. Mas, por outro lado, há os tormentos da doença. Outrora um homem intensamente independente e orgulhosamente autônomo, ele agora não pode nunca, nem por um segundo, ser deixado sozinho.

– Estar assim é o inferno. Porque não há esperança, não há alívio, e você sabe como vai ser o fim, cada dia será como o último, só talvez um pouco pior. Como Sísifio, amanhã você terá de rolar a maldita pedra morro acima, exatamente da mesma maneira.

Já estamos conversando há mais de hora, e Judt pede a seu assistente que mova seus braços e pernas para uma nova posição. Ele deixa escapar um débil gemido de alívio. Por ficar imóvel tanto tempo, seu corpo dói; também esfria pela falta de circulação do sangue, o que explica o calor sufocante do quarto.

A Esclerose Lateral Amiotrófica se abateu sobre ele com tanta rapidez que, sob circunstâncias normais, ele estaria morto dentro alguns meses. Mas a degeneração de seus neurônios motores superiores, que controlam a cabeça e a voz, parece estar ocorrendo muito lentamente, levantando a esperança – ou o medo? – de que ele possa permanecer como está por muito tempo. Inevitavelmente, contudo, ele perderá todo o poder de comunicação, salvo a habilidade de piscar.

Ele então pensa em eutanásia, em pôr um fim em uma existência ele que define como “cumulativamente intolerável”?

– Há vezes em que digo para mim mesmo: esta situação é tão miserável que eu gostaria de estar morto, em um sentido objetivo de que eu gostaria de não ter de acordar pela manhã. Pensei muito em eutanásia, não para logo, mas é preciso planejar, porque a trajetória provável é que você perca a capacidade de se expressar muito tempo antes de morrer. Ninguém quer viver em uma cadeira de rodas, incapaz de falar, apenas piscando uma vez para sim e duas vezes para não.

Neste ponto, ele diz:

– A questão a considerar não são seus próprios sentimentos, e sim os de sua família.

Mas isso tudo fica para depois. Por ora, há a pedra diária a ser rolada morro acima, o chalé suíço a ser ocupado com suas composições noturnas, o livro a ser concluído.

Tony Judt está no inferno. Mas de modo algum foi derrotado.

Tradução de Carlos André Moreira
FONTE: ZH online, 16/01/2010

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