sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Estradas brasileiras - destino: morte

Frei Betto*



As recentes tragédias de Angra dos Reis, São Luiz do Paraitinga e a queda da ponte do Rio Jacuí, em Agudos, no Rio Grande do Sul, não se comparam à mais hedionda catástrofe brasileira, provocada pelo descaso do poder público: as mortes em nossa malha rodoviária.
Em 2008, segundo o Ministério da Saúde, os acidentes de trânsito ceifaram a vida de 36.666 pessoas — o equivalente a 100 mortes por dia! Nos últimos sete anos, as vítimas somaram 247.722. No mesmo período morreram, na guerra do Iraque, 62 mil pessoas — quase quatro vezes menos em relação ao número de óbitos nas rodovias do Brasil.
Nosso país é o campeão mundial em mortes no trânsito. E, no Brasil, é em Minas Gerais onde ocorre a maioria dos acidentes fatais (3.723 mortos em 2007, e 3.682 em 2008 — dados do Ministério da Saúde).
Ano passado, no feriado da Independência, entre 4 e 7 de setembro, foram registrados 2.329 acidentes, com 97 mortos e 1.487 feridos. No de Nossa Senhora Aparecida, de 9 a 12 de outubro, 2.217 acidentes, com 88 mortos e 1.389 feridos. Em Finados, de 30 de outubro a 2 de novembro, 1.901 acidentes, com 93 mortos e 1.170 feri dos (dados da Policia Rodoviária Federal). E na Operação Fim de Ano, da Polícia Rodoviária Federal, foram 455 mortos nas estradas federais na passagem de 2009 para 2010.
O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) — a galinha dos ovos de ouro das empresas especializadas em construção e manutenção de estradas — responde pela qualidade de nossa malha rodoviária. Conhece bem as deficiências, sem conseguir saná-las: falta de sinalização, insuficiente controle de velocidade, capeamento precário do leito transitável, pouca cobertura de radares e lombadas eletrônicas.
Nossas rodovias federais se estendem por 56 mil km pavimentados. Dos quais 18 mil (32,1%) apresentam falhas graves quanto à indicação de curvas perigosas, limites de velocidade e proibição de ultrapassagem. E reina a impunidade para motoristas infratores. Você conhece alguém cujo documento de habilitação foi cassado por transformar o veículo em arma de guerra? Sabe de alguém preso por causar acidentes graves? Já viu a aplicação da lei seca nas rodovias?
O Brasil se gaba de vender 3 milhões de carros por ano (num país de grave deficiência de transportes coletivos). Quantas habilitações são concedidas na base do “jeitinho”? Os veículos são cada vez mais possantes e menos resistentes. Qualquer batida parece transformá-los em folhas de papel. Nas mãos da garotada irresponsável, fascinada com os heróis da Fórmula 1, transformam-se em armas letais.
Bares e restaurantes à beira das estradas continuam vendendo bebidas alcoólicas sem a menor restrição. E a fiscalização é precária. Conhece motorista que, na estrada, jamais foi achacado? Há tempos, equivoquei-me de percurso numa rodovia em obras. O guarda postou-se, altivo, perto da porta porta: “E aí, meu caro, viu a barbaridade cometida ali atrás? Cadê os documentos?” Examinou-os, atento, e disse: “E a infração cometida, como é que fica?” Percebi aonde queria chegar — no bolso. Respondi, indignado: “Só tem duas soluções: ou o senhor me multa ou me libera. A terceira eu não gostaria de estar na sua pele”, blefei. O homem perfilou-se, bateu continência e, atemorizado, liberou-me: “Segue em frente, comandante”.
O Brasil é o único país do mundo que premia a obrigação. Acorde-se com um barulho desses: os 2.947 servidores do DNIT ganham um extra para trabalhar em benefício da coletividade. O privilégio, à custa do contribuinte, chama-se Bônus Especial de Desempenho Institucional (Besp) e foi proposto pelo Planalto e aprovado pela Câmara dos Deputados a 28 de outubro de 2009.
É pago em parcela única até junho deste ano e consiste em R$ 28,7 mil para quem ocupa cargos de nível superior, R$ 12,29 mil para nível intermediário, e R$ 3,23 mil para nível auxiliar. O impacto no orçamento de 2010 é calculado em R$ 33 milhões. O bônus é um prêmio antecipado para acelerar as obras do PAC neste ano eleitoral.
O ser humano é um bicho singular: horroriza-se com a morte quando ela vem por atacado: torres gêmeas, queda de avião, desabamentos em Angra... Mostra-se insensível se a Dama da Foice age no varejo, ceifando vidas em número muito superior ao das catástrofes repentinas: trânsito, fome, enfermidades curáveis, assassinatos (cerca de 40 mil/ano no Brasil).
Nossas estradas serão seguras quando se punir o conluio entre serviço público e empresas privadas, e a preservação da vida dos viajantes estiver acima de interesses pecuniários e eleitorais.
Até a próxima vítima...

* Frade dominicano. Escritor, autor de A arte de semear estrelas (Rocco), entre outros livros.
Fonte: Correio Braziliense online, 15/01/2010

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