Droga que vem da Bolívia nem existiria se
não fossem os produtos químicos brasileiros usados em seu preparo
Werther Santana/AE
Visão curta. Tanto Serra quanto Dilma veem a droga
de forma pouco abrangente
Flávia Tavares
Wálter Maierovitch está cético. Não acredita que a discussão sobre drogas e narcotráfico levantada pelos pré-candidatos à Presidência seja abrangente. Por um lado, critica Dilma Rousseff por tratar a gravíssima epidemia de crack no Brasil de forma individualizada, transformada em problema do usuário. Por outro, acusa José Serra de hipocrisia ao apontar o governo boliviano como conivente com o tráfico; afinal, sem os insumos químicos brasileiros, o cloridrato de cocaína vindo da Bolívia sequer existiria. Nenhum deles compreende que a droga seja uma questão global.
"O uso político do debate sobre drogas é canalha", dispara o jurista, ex-secretário nacional antidrogas e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais. É canalha, explica, porque é efetivo na conquista de votos, já que a população está cada vez mais sensível ao tema. "Há 20 anos, os drogados eram os vizinhos. Hoje, o problema está dentro de casa."
Geoproblemas
"Os pré-candidatos não enxergam que o problema das drogas tem inúmeras multiplicações. É preciso conhecer sua geopolítica, geoestratégia e geoeconomia. Eles não conhecem isso e ficam em uma conversa pontual. Dilma fala do crack e Serra, da Bolívia, e só confundem o eleitor. O problema hoje é que há Estados com uma economia, um PIB, dependente das drogas. A Bolívia é um deles, mas isso não quer dizer que os governantes sejam narcotraficantes ou façam vista grossa.
Questão de química
"O que fazer com a Bolívia, a Colômbia, o Peru, o Equador, todos países dependentes da droga? Há 25 anos, fotos de satélite mostram que a área de cultivo da folha de coca se desloca, mas permanece do mesmo tamanho - mesmo depois do Plano Colômbia. Isso quer dizer que não há crescimento da produção, apenas deslocamento. No governo Evo Morales, foi aumentado o tamanho da área de produção para cada cultivador individual, e assim, a oferta de folhas de coca no mercado. O problema não está com os que compram a folha para mascar, por conta da tradição milenar, mas com os que compram para fazer pasta básica. Eles precisam de insumos químicos e nenhum desses países tem indústria química. E importam 100% dos insumos.
Consumidor e fornecedor
"As organizações criminosas usam o Brasil como dupla mão. O Brasil é o lugar de consumo, 80% da produção boliviana é consumida aqui. Ao mesmo tempo, fornecemos os insumos químicos. Não somos santos. Como é feito no Brasil, onde está a maior indústria química da América Latina, o controle desses insumos? Essa indústria é de fácil fiscalização, está no eixo Rio-São Paulo, mas não há controle algum. Quando era secretário nacional antidrogas, fiz com o secretário de Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos, um levantamento na Junta Comercial. Há empresas que comercializam insumos químicos, mas não têm endereço.
"As organizações criminosas usam o Brasil como dupla mão. O Brasil é o lugar de consumo, 80% da produção boliviana é consumida aqui. Ao mesmo tempo, fornecemos os insumos químicos. Não somos santos. Como é feito no Brasil, onde está a maior indústria química da América Latina, o controle desses insumos? Essa indústria é de fácil fiscalização, está no eixo Rio-São Paulo, mas não há controle algum. Quando era secretário nacional antidrogas, fiz com o secretário de Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos, um levantamento na Junta Comercial. Há empresas que comercializam insumos químicos, mas não têm endereço.
A salvação do narcotráfico
"Nenhum tráfico de cloridrato de cocaína dos países andinos sobrevive sem insumos químicos. Quando foi feito o Plano Colômbia, descobriu-se que os dois maiores fornecedores de insumos eram os EUA e Trinidad e Tobago, que nem indústria química tem. As operações eram triangulares, vinham de vários lugares. Em dezembro de 2009, o czar antidrogas da ONU, Antonio Maria Costa, deu uma entrevista ao Observer em que admitia que o sistema de compensações entre os maiores bancos do mundo foi socorrido pelo dinheiro das drogas durante a crise. Ele está falando de US$ 300 bilhões por ano. Dá para alguém apontar o dedo sem fazer um mea-culpa?
Peso eleitoral
"A discussão colocada pelos candidatos é míope. Só que ela ecoa no eleitor, porque há 20 anos, quando falávamos de drogas, pensávamos no vizinho. Hoje, o problema está dentro de casa. Então, o uso político desse assunto é canalha, é de busca de culpados. Se você diz que não haveria oferta se não houvesse consumo, também pode dizer que não haveria consumo sem oferta. E poderia incluir que não haveria drogas sintéticas ou elaboradas se não houvesse insumos químicos. Então, o que você faz? Fecha a indústria química brasileira?
A culpa dos Estados
"No Brasil, há esse discurso enganoso de que as fronteiras do País são de impossível fiscalização. Ora, um narcotraficante não sai do nada para lugar nenhum. Ele precisa de uma rota com banco, transporte, estradas. Que tal controlar a movimentação de bancos nas fronteiras? O que o Brasil faz? E o que o mundo faz para resolver esse problema? Os Estados não fazem um esforço para mudar porque há necessidade de unanimidade para se conseguir isso.
Futuro sintético
"O problema do Brasil não será o cloridrato de cocaína da Bolívia no futuro. Serão as drogas sintéticas. Trazer a cocaína de outros países é caro. A droga sintética pode ser feita aqui. Ela vai chegar a um preço baixo o suficiente para se popularizar. E com um risco adicional: as impurezas das drogas feitas no fundo de quintal, com dosagens erradas. Haverá um problema igual ao que aconteceu na Europa dois anos atrás."
____________________________Fonte: Estadão online, 06/06/2010
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