quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Love Parade: corpos conectados pelo amor erótico.

Entrevista especial com Massimo Canevacci

“A Love Parade,
misturado com os novos tipos de comunicação digital,
participa de interconectividade,
onde se coloca em crise a tradicional forma de política
e se cria uma utopia concreta que podemos chamar de heterotopia”,
analisa o antropólogo italiano.
Manifestar uma nova dimensão do amor, através do sexo e do erotismo, é, para o antropólogo italiano Massimo Canevacci, o cenário da Love Parade. Em entrevista à IHU On-Line, realizado por telefone, Canevacci analisa o fenômeno cultural revelado pelo evento que, segundo ele, é conectivo. “Penso que a Love Parade é mais conectiva do que coletiva, pois consegue conectar pessoas totalmente diferentes que reelaboram da sua própria maneira a fantasia e apresentam seu próprio corpo. Então, esse tipo de corpo erotizado da Love Parade é conectiva porque afirma a irredutibilidade de cada sujeito”, disse.

A Love Parade surgiu em 1989, em Berlim, como uma manifestação política para a paz através do amor e da música. “É como se a questão central da Love Parade fosse criar um tipo de corporalidade, um tipo de corpo erótico, um tipo de erótica do corpo baseado também na música, mas que contém a política na sua interioridade”, explica Canevacci.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos entender o Love Parade? Ele não é apenas uma festa rave, correto?
Massimo Canevacci – Vamos começar fazendo um retrospecto, porque é muito interessante entender que uma manifestação como a Love Parade começou no momento no qual o mundo ocidental iniciou um tipo de reação muito forte e obscurantista da parte das religiões monoteístas, as quais tentaram definir a dimensão do amor somente como heterossexual, relacionado somente ao casamento e à procriação. Essa é uma visão ultratradicionalista do que é o amor.
No mesmo momento, aconteceu um fenômeno que envolveu as regiões metropolitanas de muitas cidades do mundo. A partir dos anos 1990, as raves, um tipo de festa irregular que se realizavam em fábricas abandonadas, ou seja, pós-industrial, organizavam horizontalmente um tipo de festa com músicas techno muito forte que envolveu uma concepção diferente do que é dançar, estilos de vida, relações de gênero. Para eles, os gêneros são múltiplos, não dá para dividir o masculino e o feminino.
Esse tipo de história criou movimentos, especialmente em Berlim, a partir de festas rave, com uma dimensão da erótica muito diferente que gerou uma espécie de sinergia baseada num tipo de música que envolvia não somente as pessoas que estão na festa, mas toda a cidade. A metrópole, que eu chamo de comunicacional, virou um espaço subjetivo determinante como um cenário para manifestar uma nova tensão sobre o que é o amor: o sexo e o erotismo.
Então, a Love Parade é um tipo de manifestação onde cada pessoa pode manifestar a própria visão da erótica, um amor que não é baseado em reprodução, mas sim uma fantasia entendida de duas formas: imaginação e ligada ao estilo, maquiagem e inovação de visual que virou referência. A Love Parade apresentou uma visão nunca mais homologada, unificada, generalizada, à especificidade de cada pessoa, que eu chamo de multivida, ou seja, uma pessoa que é na multiplicidade. E assim, essa pessoa cria um evento que tem uma força enorme porque este tipo de ação é horizontal, ninguém paga, ninguém tem poder, não se cria visibilidade: cada indivíduo é um sujeito que apresenta a sua própria visão do amor e do erotismo. Por isso, esse evento acontece no espaço da metrópole. A metrópole é o único contexto a partir do qual a experiência da Love Parade pode se apresentar.

IHU On-Line – É possível comparar a Love Parade com as homenagens que eram feitas à Baco [1], principalmente no que diz respeito ao extravasamento?
Massimo Canevacci – Há uma avaliação de um tipo de divisão dionisíaca que desafia a ordem constitutiva da pólis. Por isso, esse tipo de subterrâneo de influência dionisíaca é reelaborado de maneira antropofágica que se manifesta no corpo da cidade. É como se o corpo da metrópole, que não é mais pólis, pudesse virar um teatro no qual Dionísio pode de novo dançar. Porque Dionísio foi também o Deus que criou o teatro e a dança, que significavam “olhar através”. Então, esse tipo de “olhar através, que é o teatro, nunca mais pode ser um lugar industrializado. O teatro vira a metrópole, a metrópole vira um espaço teatral no qual Dionísio apresenta a fantasia irregular de pulsões eróticas que não podem ser molduradas nas regras morais, políticas e do Estado.
IHU On-Line – Esse tipo de festa pode ser considerada uma das ultimas manifestações do coletivo?
Massimo Canevacci – Creio que mais do que coletivo. Para mim, o conceito de coletivo significa um lugar onde a dimensão intelectual perde características e tem mais uma dimensão compacta, unitária. Penso que a Love Parade é mais conectiva do que coletiva, pois consegue conectar pessoas totalmente diferentes que reelaboram da sua própria maneira a fantasia e apresentam seu próprio corpo. Então, esse tipo de corpo erotizado da Love Parade é conectiva porque afirma a irredutibilidade de cada sujeito.
Isso exprime, para mim, uma crítica muito forte à política tradicional baseada no partido. A Love Parade, misturada com os novos tipos de comunicação digital, participa de interconectividade, onde se coloca em crise a tradicional forma de política e se cria não uma utopia qualquer, mas uma utopia concreta que podemos chamar de heterotopia, isto é, um espaço outro que permite transformar radicalmente a metrópole.

IHU On-Line – De que forma se transforma em comunicação um evento como esse?
Massimo Canevacci – Porque penso que a comunicação está cada vez mais significativa para esse tipo de manifestações. Isto é, não dá para usar o conceito de sociedade para entender a Love Parade. Tudo o que pertence ao conceito de sociedade tradicional não funciona mais. No entanto, a dimensão comunicacional funciona muito melhor, no sentido que eu conheço uma pessoa, mas também a manifestação geral da metrópole, que tem um prazer em comunicar a diferença que transforma e se insere na experiência das pessoas, em seus corpos e também dentro das mídias. Isso é a cultura digital. Nesse sentido, a cultura digital (o feito que cada pessoa produz com sua câmera digital, celular e internet) cria um enorme aumento da força da Love Parade. Cada pessoa quer se autorepresentar e isso cria um circuito comunicacional baseado numa aliança muito forte entre as novas tecnologias digitais e o corpo. Corpo como cidade, metrópole, e corpo da Love Parade e corpo de cada pessoa individual, criam uma enorme força comunicacional que se expande em muitas metrópoles do mundo. Por isso, a grande área metropolitana, especialmente no mundo ocidental, cria a Love Parade, pois sua força é comunicacional.

IHU On-Line – Que diferenças há entre a Love Parade e o Festival de Woodstock, que também foi bastante significativo quando aconteceu?
Massimo Canevacci – Woodstock nasceu num momento específico da política e da comunicação. Ele tinha seu próprio estilo – cabelos, o amor a partir de uma visão hippie, sonhos utópicos também dionisíacos – e, essencialmente, com um tipo de música que criava uma transformação radical do sentido. Woodstock não era somente Jimi Hendrix [2] ou Bob Dylan [3]. Todas as pessoas que estavam em Woodstock viraram performáticas. Desta forma, dimensão performática nunca mais pertenceu somente à música. Cada pessoa virou um performer que criou Woodstock, que não pode ser entendido a partir de uma análise das músicas e dos músicos que tocaram lá. Dessa maneira não se entende nada. Woodstock só se entende quando se cria uma relação profunda entre cada músico e cada “expectator”, porque ele é mais do que um expectador, ele é também um ator, ele cria a cena. O corpo do músico, o corpo de Woodstock e o corpo de cada pessoa que participou viram fundamentais. É um corpo erotizado que cria um enorme poder sedutor que, naquela época, queria mudar o mundo.

IHU On-Line – No passado, grandes festivais como Woodstock congregavam as pessoas também pela causa, além da música. Hoje, onde está o sentido, qual é a causa de eventos como a Love Parade?
Massimo Canevacci – Woodstock tinha uma organização bem clara de uma visão pacifista do “make love, not war” [faça amor, não guerra]. Este era um princípio muito forte, uma visão pacifista num momento muito significativo. A Love Parade não tem esse tipo de interesse. Ela não é baseada sobre um tipo de manifestação contra a guerra. Todo mundo sabe que a guerra é presente ainda no mundo, principalmente no Iraque, no Afeganistão. Só que essa mensagem política agora é muito diferente. É como se a questão central da Love Parade fosse criar um tipo de corporalidade, um tipo de corpo erótico, um tipo de erótica do corpo baseado também na música, mas que contém a política na sua interioridade. A política não está fora da Love Parade, ela está presente no seu interior. Esta é uma profunda diferença entre Woodstock e a Love Parade.

IHU On-Line – E o que significa o fim, o cancelamento de um evento como a Love Parade?
Massimo Canevacci – Não acaba a Love Parade. O que aconteceu na Alemanha foi um tipo de mal-entendimento feroz entre o que estava acontecendo e a polícia que, em Berlim, é adestrada a fazer esse tipo de coisa. Para mim, a Love Parade nunca vai acabar. No futuro, ela será organizada de forma diferente, e, desta forma, o município e a força da polícia deveriam ser mais atentos à dimensão desse evento, pois estes, às vezes, não entendem o significado da Love Parade. Espero que a próxima Love Parade seja uma festa que enfrente, de maneira bem diferente, a tragédia que aconteceu recentemente.

Notas:
[1] Baco é o equivalente romano do deus grego Dionísio, cujo mito é considerado ainda mais antigo por alguns estudiosos. É o deus do vinho, da ebriedade, dos excessos, especialmente sexuais, e da natureza. As festas em sua homenagem eram chamadas de bacanais - a percepção contemporânea de que tais eventos eram "bacanais" no sentido moderno do termo, ou seja, orgias, ainda é motivo de controvérsia.
[2] James Marshall "Jimi" Hendrix foi um guitarrista, cantor e compositor norte-americano. Frequentemente é citado por críticos e outros músicos como o maior guitarrista da história do rock. Hendrix foi a principal atração do icônico Festival de Woodstock.
[3] Robert Allen Zimmerman, mais conhecido como Bob Dylan, é um cantor e compositor norte-americano.
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*Massimo Canevacci foi professor de Antropologia Cultural e de Arte e Culturas Digitais na Faculdade de Ciências da Comunicação, Universidade de Roma “La Sapienza”. Atualmente ensina na Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de livros como: "Antropologia da Comunicação Visual" (DP&A Editora, 2001) e "Antropologia do Cinema" (Editora Brasiliense, 1990).

Fonte: IHU online, 11/08/2010

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