terça-feira, 1 de novembro de 2011

Primavera em Paris

JOÃO PEREIRA COUTINHO*

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Escritores que escrevem com o coração na boca,
ou nas mãos, não têm lugar
na minha estante
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PERGUNTAM-ME às vezes se existe algum escritor português da nova geração que mereça atenção particular. Aconteceu na minha passagem recente pela Festa Literária Internacional de Cachoeira, na Bahia.
Pouco tenho a dizer. Leio, com disciplina espartana, a ficção portuguesa que se publica. Mas existe uma frase de James Ellroy plasmada no escritório onde trabalho que impede qualquer adesão intelectual ou emocional a ela. "Spring in Paris - who gives a shit?"
A frase foi retirada das memórias de Ellroy ("The Hilliker Curse: My Pursuit of Women") e resume a minha atitude em relação à ficção moderna: escritores que escrevem com o coração na boca, ou nas mãos, não têm lugar na minha estante.
E a ficção portuguesa -a nova- está povoada por esses bons selvagens, de primitivismo embaraçoso, para quem a primavera em Paris seria pretexto para uma longa divagação adolescente. O responsável por essa praga é, naturalmente, António Lobo Antunes, um clichê sentimental que, para um país pequeno e sem uma crítica digna desse nome (há exceções, claro), oferece ao "candidato a escritor" um modelo fácil de imitar.
Pena. Eu prefiro ver a inteligência em funcionamento e, de preferência, apresentada com aquela "sprezzatura" que Castiglione aconselhava no "Livro do Cortesão": graciosidade sem esforço evidente.
É o mais difícil de atingir -exige disciplina, trabalho, experiência e talento, muito talento. Mas por vezes acontece.
Julian Barnes, 65, um dos melhores escritores ingleses, conseguiu-o agora com "The Sense of an Ending", que venceu o Man Booker Prize. Foi a primeira vez que Barnes levou o prêmio. Foi a quarta vez que foi indicado. Estranho?
Sim, se pensarmos no sistema de premiação português (ou brasileiro), onde as comadres se vão premiando umas às outras com intimidade típica de bordel. Na Inglaterra, os prêmios literários não são brincadeiras. E a presença de um Julian Barnes na lista não significa coisa nenhuma.
Este ano, aliás, Barnes foi motivo de polêmica, não de deslumbramento. Para começar, a imprensa acusou o júri de ter esquecido outros escritores fundamentais, como o excelente Alan Hollinghurst. E, depois do veredito, de ter premiado um trabalho "menor" de Barnes quando já o deveria ter feito em 1984 (com "Flaubert's Parrot") ou 1998 (com "England, England").
Posso discordar? Sim, "Flaubert's Parrot" é o meu Barnes preferido.
Mas "The Sense of an Ending" é uma pequena lição de literatura para qualquer "candidato a escritor" que não queira seguir a estrada brega do sentimentalismo.
Começa por ser uma lição formal: para usar uma palavra que não tem tradução rigorosa em português, a pena de Barnes é "effortless", exibindo uma ironia e sensualidade que só costumam acontecer na última fase de qualquer grande criador.
Mas "The Sense of an Ending" é também uma lição de inteligência narrativa ao escolher um tema aparentemente banal para o trabalhar com verdadeira tensão dramática.
Esse tema banal é a memória de Tony Webster, um sexagenário divorciado e, como diriam os psiquiatras, sem grande "élan vital", que recorda o passado e procura um sentido para ele.
Mas, pergunta Barnes, será possível reconstituir esse passado na nossa memória imprecisa? Ou o passado de cada um é apenas a interpretação que fazemos dele -um ato criativo constante, onde preenchemos as falhas e as dúvidas com as certezas dos nossos medos e da nossa imaginação?
No caso de Tony, essas dúvidas serão testadas com uma herança inesperada que o joga de volta para a juventude -e para um velho amigo de escola que optara pelo suicídio ainda jovem.
Eis o momento para que Tony confronte o que julga que sabe -e o que terá sucedido a Tony e a todos os sobreviventes do seu ato.
Primavera em Paris -que interessa isso? Penso na cidade e sei que poderia escrever sobre as pessoas com quem lá estive; as verdades e as mentiras que foram ditas ou escutadas; os momentos de felicidade ou tédio.
Mas, lendo Julian Barnes, também é provável que tudo isso seja apenas o reflexo de um reflexo que conto a mim próprio para ter "o sentido de uma história". Sobreviver é contar histórias.
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* Jornalista português. Colunista da Folhajpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha on line, 01/11/2011
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