quinta-feira, 3 de maio de 2012

Onde a vida transcorre em câmara lenta

Fernando Reinach*

A vida passa rápido. As moléculas que compõem uma folha levam semanas para serem sintetizadas. No dia em que uma vaca mastiga a folha, seus componentes são digeridos, absorvidos e transformados em carne.
Meses depois, a vaca morre. Sua carne será degradada por bactérias e os componentes, absorvidos por outra planta. E o ciclo, com suas variações, pode recomeçar. Em menos de um ano, grande parte da matéria viva na superfície do planeta é reciclada.
Esses ciclos são mais lentos onde não há luz solar, o fluxo de energia é menor e a vida, menos abundante. Nas profundezas do oceanos há menos bactérias e a carcaça de um peixe pode levar meses para ser degradada. Por isso alguns corpos das vítimas do acidente com o voo 447 da Air France puderam ser resgatados e identificados mais de um ano após chegarem ao fundo do mar.
Ciclos que na superfície terrestre e nas partes iluminadas dos oceanos levam meses podem levar décadas no fundo do mar. Mas agora foi descoberto um local onde a vida transcorre ainda mais lentamente, onde esses tempos são medidos em milhares de anos: o subsolo dos oceanos.
Análises. Faz décadas que os cientistas estão perfurando o fundo do mar e analisando o tipo de vida no seu subsolo. Até 10 metros abaixo da superfície do fundo dos oceanos é possível identificar bactérias e cultivá-las em laboratório. Há alguns anos foram encontradas evidências que sugeriam a existência de bactérias em camadas mais profundas, até 280 metros abaixo da superfície, em sedimentos que provavelmente se acumularam faz milhões de anos.
Mas essas bactérias estariam vivas ou mortas e preservadas por camadas profundas de sedimentos? Como saber se são esporos adormecidos ou células vivas capazes de se dividir?
Agora, cientistas resolveram esse dilema analisando os aminoácidos extraídos desses sedimentos. Há muito os químicos sabem que os aminoácidos podem existir em duas formas (D e L). Elas são imagens espelhadas uma da outra, semelhantes, mas não idênticas. Estruturas com esse tipo de simetria são chamadas enantiomorfas. Nossas duas mãos são um bom exemplo.
Quando produzimos um aminoácido por meio de síntese química, o resultado é uma mistura das duas formas (D e L), mas quando um aminoácido é produzido no interior de uma célula viva, somente a forma L é sintetizada.
Por esse motivo, se isolarmos aminoácidos de qualquer ser vivo, só obtemos aminoácidos tipo L. Mas se você deixar uma amostra de aminoácidos tipo L em um vidro por milhares de anos, aos poucos parte dessas moléculas se converte espontaneamente em tipo D. É um processo lento que atinge o equilíbrio ao longo do tempo.
O que os cientistas fizeram foi isolar os aminoácidos de amostras de solo recolhidas a profundidades cada vez maiores. Em seguida, determinaram a porcentagem de aminoácidos D e L nessas amostras. Se os aminoácidos fossem todos oriundos de matéria morta, acumulada no fundo dos oceanos ao longo de milhões de anos, a quantidade da forma D aumentaria à medida que os sedimentos fossem mais antigos (em profundidades maiores). Isso porque a conversão de L em D teria tempo suficiente para atingir o equilíbrio.
Mas eles observaram que a fração de D e L se mantinha constante até profundidades de mais de 200 metros, em sedimentos formados mais de 4 milhões de anos atrás. Isso significa que parte desses aminoácidos foi sintetizada por seres vivos presentes muito abaixo do fundo do mar.
Com esses dados também foi possível calcular com que velocidade esses compostos são reaproveitados por esses microrganismos. Os resultados indicam que no subsolo do oceano os ciclos de vida são muito lentos.
Nessa região existem aproximadamente 10 milhões de bactérias por centímetro cúbico (um número pequeno). Estas bactérias levam até mil anos para reaproveitar os compostos provenientes das bactérias que morrem. Mais impressionante é o tempo estimado para elas se dividirem: da ordem de 10 mil anos.
Se uma dessas bactérias se dividiu quando as pirâmides foram construídas no Egito, hoje ela deve estar se preparando para se dividir novamente. É tão lento que é difícil de imaginar.
Esses dados sugerem que essa comunidade de bactérias degrada a matéria orgânica que se acumula no subsolo dos oceanos de maneira tão lenta que para consumir toda essa matéria acumulada ali seriam necessários quase 43 milhões de anos. É um local onde a vida realmente transcorre em câmara lenta. 
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*Biólogo.
Fonte: Estadão on line, 03/05/2012
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