Fabrício Carpinejar*
Eu sei o que desuniu a família brasileira.
O momento em que ela abandonou o tradicional almoço em casa e procurou a rapidez do restaurante a quilo.
Quando ela se desinteressou por completo da residência. Quando trocou a diarista pela faxineira duas vezes por semana.
Quando começou a comprar comida congelada e economizar com os talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria do final da tarde.
Quando as saídas ao supermercado tornaram-se frequentes. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente.
Quando a vassoura sumiu de trás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.
Quando ter uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai não mais visitou sua oficina de marcenaria na garagem.
Quando a tabuleta de bem-vindo acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da porta.
Quando a mãe adiou o jardim. Quando a vista de fora superou o carinho da decoração.
Eu sei eu sei eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que a gente parou de vestir o botijão de gás.
Aquele ato mudou a mentalidade da classe média.
Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência e ordem doméstica. Mostrava uma preocupação com o olhar das visitas. Um carinho com os coadjuvantes da rotina. Um capricho com as gavetas e despensas e forros e fundos e cantos e quinas.
Não se podia deixar o gás daquele jeito sujo e engraxado no coração de azulejos da cozinha. Correspondia a um ultraje, a falta de educação, a ausência de asseio.
Ele precisava estar agasalhado. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, os carros na garagem.
Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, o fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se pensava em trocar, não se guardava o certificado de garantia, absolutamente dispensável.
Minha mãe não largava os pedais da Singer nos finais da tarde, elaborava tampas coloridas para as compotas de doces ou revestimentos para penduricalhos.
É óbvio que costurava, mensalmente, uma saia de renda para o gás, aproveitando sobras dos tecidos da cortina.
Eu achava que o botijão fosse uma irmã.
Meu irmão caçula já considerava um menino e chamava sua roupa de poncho.
— Mas é floreado! — eu dizia. — Não existe poncho floreado.
Vestir o botijão revelava o quanto nos importávamos com o desnecessário.
O quanto tínhamos tempo livre para amar.
Tempo livre para amar a família.
Tempo livre.
O momento em que ela abandonou o tradicional almoço em casa e procurou a rapidez do restaurante a quilo.
Quando ela se desinteressou por completo da residência. Quando trocou a diarista pela faxineira duas vezes por semana.
Quando começou a comprar comida congelada e economizar com os talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria do final da tarde.
Quando as saídas ao supermercado tornaram-se frequentes. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente.
Quando a vassoura sumiu de trás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.
Quando ter uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai não mais visitou sua oficina de marcenaria na garagem.
Quando a tabuleta de bem-vindo acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da porta.
Quando a mãe adiou o jardim. Quando a vista de fora superou o carinho da decoração.
Eu sei eu sei eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que a gente parou de vestir o botijão de gás.
Aquele ato mudou a mentalidade da classe média.
Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência e ordem doméstica. Mostrava uma preocupação com o olhar das visitas. Um carinho com os coadjuvantes da rotina. Um capricho com as gavetas e despensas e forros e fundos e cantos e quinas.
Não se podia deixar o gás daquele jeito sujo e engraxado no coração de azulejos da cozinha. Correspondia a um ultraje, a falta de educação, a ausência de asseio.
Ele precisava estar agasalhado. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, os carros na garagem.
Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, o fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se pensava em trocar, não se guardava o certificado de garantia, absolutamente dispensável.
Minha mãe não largava os pedais da Singer nos finais da tarde, elaborava tampas coloridas para as compotas de doces ou revestimentos para penduricalhos.
É óbvio que costurava, mensalmente, uma saia de renda para o gás, aproveitando sobras dos tecidos da cortina.
Eu achava que o botijão fosse uma irmã.
Meu irmão caçula já considerava um menino e chamava sua roupa de poncho.
— Mas é floreado! — eu dizia. — Não existe poncho floreado.
Vestir o botijão revelava o quanto nos importávamos com o desnecessário.
O quanto tínhamos tempo livre para amar.
Tempo livre para amar a família.
Tempo livre.
------------------
* Poeta. Jornalista. Escritor.
Fonte: ZH on line, 06/11/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário