Luiz Fernando Dias Duarte*
Em sua coluna de novembro, o antropólogo
Luiz Fernando Dias
Duarte
reflete sobre os espaços virtuais
como uma nova dimensão
de
reverberação das emoções da nossa cultura,
onde convivem individualismo
acentuado
e sociabilidade intensificada
Os desejos e as fantasias eróticas, tão essenciais para a
vida humana, encontram no espaço virtual uma arena privilegiada para se
desenvolver. O The Ohhtel é um dos vários sites de encontros brasileiros
e destina-se a promover relações extraconjugais.
O vocabulário sobre as emoções na cultura ocidental contém muitas
áreas de imprecisão e ambiguidade, o que enseja a impressão comum de não
corresponder a representações sociais sistemáticas, recorrentes e
obrigatórias. Desejo e fantasia são algumas dessas categorias que
deslizam com frequência em nossa linguagem, como se expressassem apenas
volúveis devaneios da vida individual de cada um de nós.
Tanto as psicologias quanto as ciências sociais enfrentam o desafio
de compreender os modos pelos quais se estruturam essas dimensões da
experiência humana – e como emergem e intervêm nas tramas da vida
social.
Já nos primeiros tempos das ciências sociais, temas como os do
‘ideal’, da ‘imitação’, da ‘influência’, da ‘autoridade’, do ‘transe’ se
impunham nessa área sutil da constituição coletiva da vida dita
‘subjetiva’ dos sujeitos. Dimensões que, sob a forma das ‘paixões’ e da
‘imaginação’, já haviam motivado os filósofos sociais desde o século 17,
devido à sua crucialidade nas esferas da família, da religião, da
política e da prática econômica.
A capacidade de imaginação e de projeção futura de imagens ideais,
desejáveis, é uma dimensão essencial da construção dos sentidos do mundo
em qualquer sociedade. Entre nós, essa capacidade é sobrevalorizada
como chave da ideologia do progresso e da mudança, sob a forma da
‘criatividade’ e da ‘invenção’. Tanto nossas ciências como nossas artes e
nossos meios de comunicação são lugares regulares do cultivo e fomento
da imaginação ideal.
Graças ao extraordinário desenvolvimento da criatividade científica,
produziram-se recentemente novos recursos públicos de compartilhamento
da fantasia e do ideal, concentrados na comunicação digital e na
possibilidade de sua circulação em ‘mundos virtuais’.
A esfera da internet, com suas múltiplas
possibilidades de invenção e
comunicação,
abriga hoje formas cada vez mais
complexas de troca social
A esfera da internet, com suas múltiplas possibilidades de invenção e
comunicação, abriga hoje formas cada vez mais complexas de troca
social, a partir de posições máximas de individualidade, intimidade e
exclusividade. Cada sujeito social exercita sua vontade e obedece ao seu
desejo de forma singular, ao acessar o espaço virtual e encaminhar na
tela suas opções de navegação. Esse espaço é, no entanto, apenas uma
nova versão dos espaços sociais reais, essenciais para o estabelecimento
de uma identidade humana.
Imperiosa condição
Acabo de participar, no 36º Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs),
de um Grupo de Trabalho sobre ‘sexualidade e gênero’, em que diversas
comunicações puseram em cena os mundos virtuais, do ponto de vista das
fantasias sexuais ou eróticas para ali transpostas e ali retrabalhadas e
vivenciadas.
Do ponto de vista dos organizadores do grupo, trata-se de uma
coincidência imprevista; do ponto de vista da experiência social que
cabe aos antropólogos interpretar, trata-se de uma imperiosa condição:
os desejos e as fantasias eróticas, tão essenciais para a vida humana,
encontram no espaço virtual uma arena privilegiada para se desenvolver,
já que podem circular em uma esfera de trocas muito ampliada, em um
gigantesco mercado de opções, com altas garantias de anonimato e baixas
exigências de dispêndio econômico.
Ana Paula Vencato tratou das mulheres que se relacionam com crossdressers
masculinos na vida real e que têm suas ambivalentes experiências
compartilhadas em redes virtuais; Laura Lowenkron explorou “a construção
dos marcadores corporais da menoridade em investigações policiais de
pornografia infantil na internet”; Débora Leitão apresentou sua pesquisa
sobre “sexualidade e mercado erótico no mundo virtual Second Life”;
Carolina Parreiras tratou da produção de pornografia alternativa na
internet; e Weslei Lopes da Silva discutiu as “representações e
vivências do corpo feminino em interações sexuais pagas no ciberespaço”.
Outros trabalhos não focados na internet, como o de Amaro Braga
Júnior sobre a ‘homoafetividade’ em quadrinhos japoneses, permitiram uma
comparação frutífera entre diferentes conjugações da fantasia erótica
contemporânea no Brasil.
Virtualidade e realidade
Muito se pode discutir as condições da pesquisa em tais contextos: o
acesso às redes e grupos; a ética da relação com os interlocutores; a
fluidez e impermanência dos círculos de interação; a dificuldade de
proceder a correlações entre as condições ‘reais’ dos sujeitos plugados e
as que são encenadas por seus avatares on-line.
Em outro nível de preocupações, o próprio estatuto da ‘virtualidade’ é
muito discutível, já que as experiências desencadeadas nesse meio são
também ‘reais’ ao seu modo; no registro da relativização a que se dedica
a antropologia sobre a concepção de realidade característica de nossa
cultura.
Afinal de contas, a leitura de um romance, a realização de uma
viagem, a fruição de um concerto musical, a experiência de um ritual
religioso ou de absorção de um alucinógeno são todas elas experiências
fantásticas de efeitos imediatamente concretos, de máxima implicação
para a vida ‘real’ de cada um de nós.
A internet corresponde a uma
nova dimensão de reverberação de
todos os desejos e de todas
as fantasias formuláveis em
nosso código
cultural
A internet corresponde, assim, a uma nova dimensão de reverberação de
todos os desejos e de todas as fantasias formuláveis em nosso código
cultural, com potenciais de realização em escala de massa e com algumas
propriedades singulares, que os estudos tentam discernir.
Novos horizontes de relação entre o público e o privado são evidentes
– e afetam particularmente as experiências eróticas. Também se
apresenta aí uma nova fronteira entre a sensibilidade corporal imediata e
as mediações intelectuais e cognitivas, o que desafia as convenções
tradicionais da satisfação do desejo e da atualização da fantasia.
E a própria fronteira entre a fantasia e a realidade pode se
refundir, como na criminalização da posse de imagens de pornografia
infantil num computador pessoal, estudada por Laura Lowenkron: um crime
de fantasia numa fervilhante galáxia de desejos.
Sugestões de leitura:
Leitão, Débora Krischke. Entre primitivos e malhas poligonais: modos de fazer, saber e aprender no mundo virtual Second Life. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.38, jul/dez 2012.
Bell, Mark. Toward a definition of virtual worlds. Journal of Virtual Worlds Research, vol.1, n.1, 2008.
Butler, Judith. The force of fantasy: feminism, mapplethorpe and discursive excess. In: Cornell, D. (org.). Feminism and pornography. Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, p. 487-508.
Foucault, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
Miller, Daniel e Slater, Don. Etnografia on e off-line: cybercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n.21, p.41-65, jan/jun 2004.
Parreiras, Carolina. Altporn, corpos, categorias e cliques: notas etnográficas sobre pornografia online. Cadernos Pagu, n.38, jan/jun 201
Leitão, Débora Krischke. Entre primitivos e malhas poligonais: modos de fazer, saber e aprender no mundo virtual Second Life. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.38, jul/dez 2012.
Bell, Mark. Toward a definition of virtual worlds. Journal of Virtual Worlds Research, vol.1, n.1, 2008.
Butler, Judith. The force of fantasy: feminism, mapplethorpe and discursive excess. In: Cornell, D. (org.). Feminism and pornography. Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, p. 487-508.
Foucault, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
Miller, Daniel e Slater, Don. Etnografia on e off-line: cybercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n.21, p.41-65, jan/jun 2004.
Parreiras, Carolina. Altporn, corpos, categorias e cliques: notas etnográficas sobre pornografia online. Cadernos Pagu, n.38, jan/jun 201
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* Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de JaneiroFonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo/fantasia-e-desejo-nas-redes-sociais
* Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de JaneiroFonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo/fantasia-e-desejo-nas-redes-sociais
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