quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A busca do ser inteiro

Edu Almeida*
 
Chego em casa à noite, cansado ao extremo, e desabo no sofá. Termina mais um dia caótico, uma semana alucinante, um ano de trabalho intenso. Tudo está para começar outra vez, penso. Tento me conformar. Desabei no sofá sentindo-me moído, “em cacos”, a ponto de desmontar. As almofadas confortam os pedaços num forte abraço. Como pode, um móvel banal assim, ser tão acolhedor? Meu corpo se percebe envolvido por inteiro, sinto o toque leve em cada ponta de sua superfície. Um corpo pesado e esparramado como se jamais fosse se recompor. Passam imagens rápidas em minha cabeça, uma profusão aleatória: mãos, massagem, o divã de Freud, um casaco de pele, uma colcha de retalhos costurados com linha grossa, um colchão recheado de bolinhas de isopor... então, tudo faz sentido.

Por causa de uma pesquisa sobre a artista Lygia Clark, acabei me aventurando numa série de conceitos psicanalíticos até então estranhos para mim. Essa é uma das características que mais me agradam no ato de pesquisar: o inesperado sempre pronto para surpreender. Pois bem, eu estava lendo Donald W. Winnicott com o propósito de entender alguns possíveis princípios da Estruturação do Self, obra que se encontra numa fronteira pouco discernível entre a prática artística e a terapêutica. Existem indícios de que Lygia apreciava as teorias winnicottianas, então alguma coisa ali poderia me ajudar a amarrar pontas soltas da investigação. Foi assim que me deparei com uma passagem sobre a integridade do ser.

Integridade é aquilo que nos mantém sãos. Talvez seja ela própria sinônimo de sanidade. Penso isso num sentido amplo, que não diz respeito somente à saúde mental, mas ao equilíbrio geral do universo. Integridade moral, física, psíquica, social etc. O ser humano em harmonia com o seu mundo interno e com a realidade compartilhada. Não é isso que buscamos, afinal? Sentir-nos plenos, completos, sem faltas, falhas ou frustrações, sem lacunas a preencher? Manter o conjunto estável para “o que der e vier”, para encarar toda a crise que perturbe nosso equilíbrio emocional?

Lygia Clark trabalhou, artisticamente, com essas ideias. Sua Estruturação do Self consistia em sessões “terapêuticas” com uma hora de duração cada, três vezes por semana, num processo ao longo de meses ou anos. Os “clientes”, como ela chamava os amigos que se submetiam à experiência, eram atendidos individualmente. Eles se deitavam sobre uma almofada enorme, feita com bolinhas de isopor, na qual afundavam. A artista massageava seus corpos com as mãos e aplicava neles uma série de objetos ditos “relacionais”, cujo objetivo era provocar sensações diversas e ativar, por meio do toque, partes inertes, fragmentadas. Ao tomar conhecimento de cada centímetro de si, o cliente sentia-se estruturado, completo, íntegro. A fragmentação, vivida como um desmembramento angustiante, recompunha-se na forma de “um só corpo e um só espírito”. A unidade do ser.

Vejo isso tudo como uma proposta artística das mais belas e instigantes — por mais que Winnicott, entre outros psicanalistas, forneça conceitos teóricos, eu continuo a entender a Estruturação do Self como ato poético-estético. Isso de maneira alguma diminui sua relevância, pelo contrário; faz jus ao campo de conhecimento que a originou.

A pele é um elemento importante. Segundo Winnicott, o toque envolvente e sustentador, sentido na pele pelo bebê, permitirá a ele compreender os limites de seu corpo e também a existência do mundo externo. A pele é a fronteira entre o nosso interior e a realidade compartilhada, por isso o toque que a sensibiliza é estruturante. Como a mulher que, no Conto Azul de Marguerite Yourcenar, apalpa-se o tempo todo para se certificar de que existe, de que reconhece todos os pedaços do corpo como sendo seus.

Durante a entrevista que o artista e psiquiatra Lula Wanderley me concedeu no Rio de Janeiro, ele explicou que a pele possui também a função de membrana, ou seja, uma superfície que regula trocas entre o dentro e o fora. Lula foi amigo de Lygia Clark e, com o apoio dela, levou a Estruturação do Self para a instituição psiquiátrica, sistematizando-a como terapia propriamente dita, onde obteve resultados excelentes (apesar das dificuldades enfrentadas em meio a seus pares para incluir um pouco de arte entre os medicamentos receitados).

Enfim, o assunto é complexo para este curto espaço. O que resta, por ora, é saber que a expressão “sentir-se um caco”, dita por alguém exausto física ou mentalmente, tem razão de ser. Não sei identificar sua origem, o que não me impede de, no caso, recomendar um bom sofá, desses em que a gente afunda por completo. Uma almofada macia que acolha e conforte. A solução parece óbvia, mas os motivos não são. Porque a proposta vai além do relaxamento. Ao tomarmos conhecimento de nossos corpos e de nossos limites, de todos os pedaços que nos compõem, adquirimos também a sensação de integridade física, moral e psíquica, entre tantas outras que permitirão enfrentar o novo dia, a nova semana, o novo ano. Desafios de uma vida inteira que sempre tentam nos fazer desmoronar.
----------
* Crítico literário. Colunista do Correio Popular.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/01/09
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário