Álvaro Pereira Júnior*
Um grito desesperado no vácuo, o céu coalhado de coisas mortas, estrelas que não existem mais
Trezentos e sessenta e cinco dias de farsa, de conversas imaginárias, de
não diálogos, palavras atravessadas, da glote que se fecha, asfixia, na
garganta áspera o ar que passa queima como gelo.
De não presença, não sorrisos, de perda de tempo.
Ano de indecisões, ou decisões erradas, desastre iminente, passos mal
dados, de indefinição, de atrasos, adiamentos. De insegurança,
arrependimento, da brutalidade da dúvida, de não pensar, ou pensar
demais. De caixas postais vazias, telefones sempre mudos, mensagens
dissipadas no éter como fumaça virtual.
Da ausência de desejos ou ambições. De um grito desesperado no vácuo,
onde o som não se propaga. Do céu coalhado de coisas mortas, estrelas
que já não existem (mas só agora seu brilho nos atinge, estertor feito
de fótons).
De oportunidades desperdiçadas, contatos nunca estabelecidos. De papos
de araque, dissimulações, promessas não cumpridas (feitas e recebidas).
De pouco se lixar, sem prazos, sem projetos, sem horizonte, bússola de
agulha desmagnetizada. De um único olhar, longo, indiferente, que fita
uma planície de vidro opaco.
Ano de falta de ideias, de lugares-comuns, ano da página em branco, do
teclado em silêncio, do caderno vazio, de falar sozinho, ou nem isso.
Do eco dos próprios passos na madrugada, rua escura coberta de névoa, do
caminhar sem rumo, de nunca ter rumo, de escolher os piores trajetos,
da angústia da perda total.
Ano de roer as unhas, ranger os dentes, de sopro no coração, de sangrar
aos poucos (cada gota que mancha traz o vermelho do ferro e a densidade
do mercúrio). De perder apostas, ficar devendo, implorar clemência,
ouvir um não a cada hora.
Ano de vacilar na curva, agonizar, enxergar o próprio corpo do alto,
percorrer túneis, uma luz, depois o escuro mais escuro, todos os
comprimentos de onda em absorção total.
De ir embora para nunca mais voltar, mas acabar voltando por falta de
alternativa. Do reflexo em estilhaços, paredes que se fecham, um quarto
frio, TV fora do ar, solidão.
De mandar mensagens a si mesmo, passar datas em branco, esquecer essas
datas, ou lembrar e não sentir nada, nada mesmo, fechar os olhos, fazer
contagem regressiva e pedir para acabar logo.
Ano sem metáforas nem ironia, nenhuma figura de pensamento ou linguagem,
frieza, ano bege, indistinto. De dissonâncias, harmônicos fora de fase,
interferências destrutivas.
Ano de isolamento, de mergulhar nas canções mais sombrias. De assistir
mentalmente a sessões contínuas de filmes em que ninguém é feliz. De
espinha em pedaços e coração intranquilo.
De experiências terríveis, aniquilação, ampolas vazias, chegar ao
limite, das janelas mais altas, de escorregar com tudo, de deslizes sem
volta ou perdão.
De ser um fio desencapado, nunca relaxar. De ter uma britadeira endógena
entre os ouvidos, 24 horas por dia, descanso impossível, inferno,
vigília autoimposta.
Ano de dor, tensão sem fim, músculos contraídos, sinapses mergulhadas em
um torpor de afasia, impulsos nervosos abaixo do nível de detecção. De
tremores, delírio na noite, lençóis ensopados.
Ano de todos os males, de almas penadas, dos círculos concêntricos do
inferno, de uma espiral de danação, dos pesadelos mais realistas.
Da cidade medonha, do caldo podre da enchente, dos parasitas no esgoto, das doenças sem cura.
Do erro do médico, do planejamento precário, da combustão incompleta, da fuligem que mancha o pulmão.
Do papel que não vale nada, chutes, números sem sentido, de conclusões
indevidas. Do experimento que falha, do desespero, da fraude, da
execração.
De não entender nada, de correr sem ter aonde chegar, do ônibus que não
para. Dos rostos indiferentes que passam na chuva, das vozes distantes
em línguas guturais, corredores que nunca terminam, labirintos que
desembocam em novos labirintos.
Cinquenta e duas semanas em que cem flores murcham. De martírio,
desprezo, incômodo, deslocamento, deficit de atenção, pensamentos
obsessivos.
Do fracasso recorrente, vexame, vergonha. E da desesperança, eterna companheira.
Todo ano novo pode ser o pior ano de nossas vidas.
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* Jornalista.
cby2k@uol.com.brFonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/87048-o-pior-ano-de-nossas-vidas.shtml 05/01/2013
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