quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

As idéias não correspondem aos fatos


Arnaldo Jabor

Além da crise econômica e social, vivemos hoje também uma crise lingüística. Sim; os fatos estão superando as interpretações. O mundo aboliu certezas. E palavras novas gemem por existir.
Sempre achei que Joyce enlouqueceu ao escrever Finnegans Wake. Ele era gênio, mas pirou nos trocadilhos. Por isso, clamo: “Onde está você, Joyce, agora que precisamos de palavras novas para descrever o mundo?”
Todo discurso ficou duro, paralítico diante da velocidade da vida. Sim, temos de usar outros termos para descrever a loucura que nos tomou. Como cantou o Cazuza: “As idéias não correspondem mais aos fatos.”
As coisas andam tão rápidas que as palavras correm atrás, tentando um sentido, mas, capengas, não dão conta. Como as pretensas “limitações ao capitalismo” (o que já é um absurdo) que não seguram a voracidade de um mercado virtual, como o amor que se esvaiu numa apropriação indébita do “outro”, como o sexo que virou uma máquina narcisista, como os governos que fingem funcionar, mas apenas dançam um falso balé para as massas, como a política que não passa de um parafuso espanado que não faz girar a vida social, as palavras ficaram vazias de sentido.
Como descrever um homem-bomba? É um suicida ou um feliz renascido para Alá? Como chamar o sujeito que, na Alemanha, pediu para ser morto e devorado no jornal - e foi? Como nomear a violência que explode, com homens torrados nos “microondas” dos morros, com esquartejamentos de crianças, com bebês no lixo? É crueldade de alguns “cidadãos desviantes” ou é uma nova espécie de animal que surge da lama?
Temos de recorrer aos chamados “oxímoros”. Sabem o que são? O oxímoro é a figura de retórica mais útil no mundo atual. Nascem de duas palavras contraditórias se unem para chegar a um terceiro sentido. São como bichos de duas cabeças, centauros da sintaxe, para dar conta da ambivalência do mundo.
Podemos falar de um “silêncio eloqüente” ou o contrario, “uma eloqüência muda”, como tantos discursos com que o governo atual nos afoga.
Podemos falar também de “uma inocente culpa” para designar as cassações cassadas na Câmara, ou os ladrões liberados pelos tribunais que já criaram um oxímoro também, os “habeas-corpus preventivos”, ou seja, o direito à mentira sem punição.
Que nome dar a “era Bush”? Democracia ou “demoniocracia”, declarando guerras em nome da paz? E a recente (graças a Deus banida para o Alasca) Sarah Palin, que era um “pitbull de batom”? O que dizer de termos como “globalização ética ou capitalismo socialmente responsável”?
Que nome daremos ao desejo de extermínio que começa a brotar nos cérebros? Exterminar bandidos, exterminar excluídos, exterminar superpopulação? Quantas vezes desejamos que os miseráveis desaparecessem? Que nome daremos à razão exterminadora que se organiza? “Africa addio?” “New Auschwitz”, “Hello Treblinka?”
Que palavras para designar a paralisia do político brasileiro que vai muito além do conservadorismo, do desejo do fixo? Que nome dar a este melaço da alma que odeia as reformas e o novo? Podemos chamar políticos de “reacionários” - tudo bem - mas, como nomear a linfa ancestral que os alimenta? Que visgo brasileiro é esse que anima os “empatadores” do progresso? É uma pasta feita de egoísmo, preguiça, escravismo colonial que movimenta essas matilhas de canalhas. Que nome dar a isso? A gosma do Mesmo?
Como chamar o sanduíche misto do público e privado no Brasil? Não há mais a divisão tradicional, casa-rua, privado e público. O público e privado estão imbricados num DNA em espiral, uma espiroqueta pálida que faz a História andar em círculos viciosos.
Como nomear a simbiose entre mídia e política? A notícia cobre os fatos ou os fatos obedecem ao desejo de notícia? O que é imprensa e o que é História? O que é virtual e real nesta terra? Media-politics? Polimídia ? Poli-show? A política como teatro. Dancing days: Corpo de baile do Congresso? Malabaristas do Executivo?
Que outra palavra para nomear a idéia atual de “felicidade”? Ser feliz hoje é excluir o mundo em torno, como grades em edifícios de luxo. Ser feliz é pelo “não”. Hoje no Brasil é “não” ver a miséria, “não” se preocupar com o país, “não” acreditar em nada.
Ser feliz: nada ver, nada ouvir. Ouvidos moucos, antolhos, visão seletiva. Neo-felicidade? Ou in-feliz-cidade?
A miséria já foi útil. Diante dela, tínhamos a vantagem da compaixão. Hoje, diante da solução impossível, nossa compaixão virou raiva. O pobre virou um estraga-prazeres. Como chamar o sentimento de tédio e medo diante de um menino de rua na janela do carro? “Compaixão”, não. Ódio e pena? Contra-paixão?
Que nome daremos a esta nova língua, nova ética, que a miséria cria nas periferias? É uma razão que a loucura produz, os restos que sobram do “não”. É uma “novi-língua” feita de grunhidos, afasia, novos sentidos de uma miséria desconhecida.
Já surgiu um outro país dentro da fome, com um grande uivo ilógico que está além da piedade, do bom senso, invencível por qualquer progresso? Seria o quê? O Bucho? A Coisa?
Como nomear, digamos, o sexo? Neo-sexo? O sexo vestiu a camisa. Na hora do amor, pensamos na morte. Na hora da nudez, usamos o terrível capote inglês, que cria o medo na hora da alegria.
A Camisa-de-vênus nos protegia contra o excesso de vida. Hoje, como chamá-la? Amor-medo? Nojo-amor? A camisinha de Tanatos?
E no mundo da inteligentsia (esta palavra antiga): “gênios inúteis”, “burros cultos”, “neocretinos”? E os novos tipos políticos? Neoconservador, progressista-reacionário, direitismo de esquerda ou esquerdismo de direita?
E neste ano que “começa a terminar”? Seremos livres-prisioneiros, inocentes-criminosos, tristes-palhaços, filhos da bolha, povo-platéia, o quê? Não há mais palavras para exprimir nossa indignação ou será que não temos mais indignação para exprimir em palavras?
http://www.estado.com.br/editorias/2008/12/09/cad-1.93.2.20081209.6.1.xml

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