quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Para entender Carl Schmitt (III)


Roberto Romano
Schmitt não limita suas receitas de teratologia jurídica ao presente nazista. Ele busca investir suas teses na história do Estado alemão. No escrito Staat als ein konkreter, an eine geschichtliche Epoche gebundener Begriff (O Estado como conceito concreto, adstrito à uma época histórica), publicado em Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954 (Berlin, Duncker & Humblot, 1958), ele discute o Estado e a soberania desde o século 16 e proclama ter chegado o fim do Estado como organização política geral. Desde a instauração nazista o povo é a forma da unidade política. E vem a sua definição do nacional socialismo: “identidade racial incondicional (Artgleichheit) entre o líder e o séquito (Gefolgschaft)”. Schmitt entende “raça” no sentido vulgar. (Cf. Staat, Bewegung, Volk, ed. cit. p. 42).
Como indica M. Stolleis, juiz e pesquisador do Direito, depois de 1933 “ninguém foi mais rápido ou mais competente em suprir o novo regime com slogans” do que Schmitt. Ao analisar Staat, Bewegung, Volk, afirma Stolleis: “Schmitt distingue o aparato burocrático e militar de comando (Estado), o partido do Estado (o movimento) que seguem rumo a uma via similar, visando um só ponto e o ‘povo’ organizado em unidades autônomas, incluindo as igrejas. A lei definida pelo Estado se tornou agora puro instrumento. A legalidade, que antes mediou a legitimidade, foi amesquinhada a um ‘modo funcional do aparelho burocrático do Estado’”. (Cf. Stolleis, Michael, A History of Public Law in Germany, 1914-1945, Oxford, Un. Press, 2004, p. 340). Termina Stolleis: “Com o Estado, Movimento, Povo, Schmitt articulou a trindade que invadiu toda o aparelho de propaganda do regime”.
“Povo”, é preciso repetir, inclui apenas os arianos. Tal povo é protegido pelo Estado nazista com força física e leis excepcionais. Assim ocorreu com a lei de 14 de julho de 1933, que autoriza a esterilização em casos de imbecilidade hereditária, esquizofrenia, loucura depressiva, epilepsia hereditária, dança de São Guido, cegueira hereditária, surdez idem, grave deformação física. Algo pior surgiu com as leis de Nuremberg. Os decretos eugênicos se detinham no pretenso saber científico. As leis de Nuremberg definiam a cidadania em termos raciais e nomeavam o inimigo de raça, o judeu. Aqui importa ler (falo sempre para os honestos que não vivem do ouvir falar nem de slogans) os livros de Fr. Neumann (Behemot. The Structure and Practice of National Socialism, Oxford, University Press, 1944) e de R. Hilberg (La destruction des Juifs d’Europe, Paris, Arthème Fayard, 1988). Schmitt segue a diretiva posta em Mein Kampf. “O alvo supremo deve ser a expulsão total dos judeus.” Hitler fala em exterminar (Vernichtung) e mesmo em uso de gaz contra eles. A sorte da Primeira Guerra Mundial, segundo o futuro Führer, seria outra se no fronte, em vez de soldados, 10 mil ou 15 mil hebreus tivessem sido expostos aos gazes asfixiantes. Schmitt/Hitler foram eficazes. Mataram milhões de judeus.
Não é possível atribuir inocência a quem elogia a eutanásia ou o genocídio. Na Alemanha nazista ou no Brasil de hoje, pregar aquelas medidas é crime. Se alguém usa conceitos genocidas e diz ignorar o seu significado, exibe incompetência para exercer cargos públicos. Se os utiliza e conhece os sentidos neles presentes, o crime é maior. Schmitt exibe anti-semitismo, traduziu aquela ideologia em textos jurídicos postos em leis. Ele ajudou a estabelecer a exclusão social e biológica que gerou o Holocausto.

*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Unicamp
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1610694&area=2190&authent=87743BF43ABFF2BFE60366022DCA2D

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