“Mas que guerra do crucifixo!
Digamos a verdade, caso se tivesse tratado de uma estátua de Buda,
teria sido exatamente igual. Aqui o problema não é o crucifixo, não creio que exista alguma hostilidade preconcebida àquilo que ele representa.
O que existe, sim, e é plenamente justificado, é uma aversão total e incondicionada ao fato de que se imponham símbolos”.
Na Espanha,
o filósofo Fernando Savater
pode ser considerado o intelectual laico por excelência, o qual sempre defendeu, com extremo espírito crítico, o princípio da inconfessionalidade do Estado. “A única coisa verdadeiramente clara sobre a laicidade da nossa democracia”, escreveu a apenas um mês no jornal El País, “é sua insuficiência”.
O filósofo espanhol foi entrevistado por Alessandro Opees. A entrevista foi publicada pelo jornal La Repubblica, 02-12-2008. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
Professor Savater, mas então, por que o fato da presença dos crucifixos nas escolas continua sendo um tema que esquenta tanto os ânimos?
A resposta é muito simples: pela verdadeira e própria deformação do problema que é feita, como de costume, pela hierarquia eclesiástica. Aqui não existe nenhuma “cristofobia”, como querem fazer-nos crer. Não há nenhuma Igreja assediada ou recusada. A realidade é que não existe nenhum motivo com base no qual os crucifixos deveriam continuar a ficar afixados nas paredes das escolas espanholas. Este é um país no qual o princípio de laicidade e aconfessionalidade do Estado é solenemente sancionado pela Constituição democrática votada há trinta anos. Seria hora de começar finalmente a aplicá-lo. Eles, se querem os crucifixos, dispõem das escolas católicas e confessionais: é a única sede onde é lógico e natural que sejam expostos.
Não crê, portanto, que os contastes que esta questão continua a suscitar possam derivar da reação de recusa que a Igreja provocou em muitos espanhóis pelo seu apoio à ditadura franquista?
Em qualquer caso é possível, cada um tem suas idéias e pode-se levantar a hipótese que ainda haja quem conserva uma recordação negativa daquela época na qual o crucifixo estava ali a simbolizar uma educação católica imposta pelo Estado. Se há uma reação de recusa, ela é justificável, mas duvido que exista quem queira alimentar novas tensões.
Ao seu juízo, então, é a Igreja que alimenta a estratégia da contraposição frontal?
É o único caminho que há para defender uma posição que agora se tornou indefensável. Este Estado é laico e deverão acabar por aceitá-lo. O problema é que a Espanha continua sendo, não obstante tudo, um dos países no qual a Igreja católica goza de mais privilégios e de um reconhecimento público desmesurado com respeito à sua presença real nos comportamentos cotidianos dos cidadãos. Aqui ainda vigoram os acordos antidemocráticos estipulados em 1979 com a Santa Sé e que um governo realmente progressista deveria ter revisto há tempo. E até se aumentou a contribuição econômica à Igreja que, através dos impostos, pagam todos os cidadãos espanhóis.
No entanto, professor Savater, o governo socialista de Zapatero fez da laicização do Estado a própria bandeira, tanto que é visto pela hierarquia eclesiástica como a fumaça negra nos olhos.
O verdadeiro problema é que o Partido socialista é especialista em dar sempre um passo em frente e dois passos para trás. Assume empenhos concretos, elabora grandes afirmações de princípio que, depois, demasiado rapidamente, ficam no ar.
Sobre o caso dos crucifixos, disseram que deveriam ser removidos.
Mas, também aí se enganaram. É absurdo que o ministro da Educação declare que a decisão deve ser confiada a cada escola. Que um crucifixo seja removido ou permaneça afixado na parede segundo o caso de haver ou não um progenitor que o peça. Se se escolhe este caminho, então, sim, é que se pode desencadear uma guerra. Se existe uma norma, que ela seja válida para todos, aplique-se e basta. É esta a única solução.
Para os bispos poderia ser o pretexto para lançar novas mobilizações de praça, como já o fizeram contra os matrimônios gays e a abolição da obrigatoriedade da hora de religião nas escolas.
Não creio que chegarão a tanto, não penso que haverá novas mobilizações. Tanto mais que, se tiverem se dado conta, conseguem mobilizar sempre menos. Esta Igreja está em crise e por fim deverá aceitar ver redimensionar-se seu próprio papel. Quer lhe agrade ou não.
Provavelmente ainda será um caminho muito longo.
Imagino que sim, um caminho longo. Mas, isto é algo que sabeis muito bem também na Itália, onde a Igreja continua a ter um papel e uma presença muito semelhante, se não superior, àquela que exerce na sociedade espanhola.
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