terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Decálogo do diálogo sobre Bioética

A Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII da Espanha
publicou no sítio Religión Digital, 20-12-2008,
uma declaração sobre os problemas da
que aqui publicamos na íntegra.
A tradução é de
Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII quer se unir ao movimento de diálogo interdisciplinar da Bioética na busca comum de valores compartilhados, mas sem se dar o direito de intromissão para ditar normas de moralidade à sociedade civil. Cremos que a Teologia deve se somar a tal diálogo para ajudar a transformar, tendo-se em vista os novos dados, alguns de seus paradigmas e conclusões; mas sem impor exclusivamente interpretações de sentido sobre a vida e a morte, a dor, a saúde ou a doença.
No terreno da bioética, é necessário distinguir três tipos de questões: as científicas, as filosóficas e as religiosas. A intervenção no debate sobre as questões científicas corresponde aos especialistas em tais matérias. Nas questões filosóficas, existe uma ampla pluralidade de concepções. No terceiro tipo de questões, as religiões estão em seu legítimo direito de expor suas concepções, mas não podem exigir o seu cumprimento a toda a sociedade, como se fossem as únicas válidas. No contexto da sociedade plural e secular, os fiéis podem participar no debate público sobre bioética, conjugando sua própria fé com o empenho do diálogo em meio a situações interculturais e inter-religiosas.

Com esse espírito de diálogo, propomos o seguinte Decálogo:

1. Unimo-nos ao movimento de diálogo interdisciplinar da bioética como conversação pública para buscar, em comum, respostas aos desafios que o cuidado da vida na era da biotecnologia propõe. Cremos que, para as ciências e as humanidades, vale o programa emblemático. Em vez de enfrentar as éticas ou as crenças contra as ciências e as tecnologias, convém fomentar sua integração mediante a educação, a colaboração dos meios de comunicação e o debate cívico sem crispação.

2. Para convergir em uma ética autenticamente global, queremos escutar as diferentes perspectivas mediante o diálogo intercultural sem exclusões nem hierarquias prévias. A aliança de civilizações e o diálogo de religiões são imprescindíveis para fomentar uma cultura da vida.

3. Desejamos e esperamos que as diversas religiões se unam a essa busca em comum de valores frente ao futuro da vida e da humanidade. Respeitaremos a pluralidade, unindo-nos à busca comum de convergências em valores para garantir, responsavelmente, o futuro da vida e da humanidade. “Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um...” (Gálatas 3, 28). As diversas crenças deverão passar pelo crivo da autocrítica para se livrar de seus respectivos exageros, por exemplo, a homofobia, os maus-tratos às mulheres ou a discriminação das vidas mais desfavorecidas.

4. As atitudes aprendidas no evangelho de Jesus nos motivam especialmente para apoiar uma ética da gratidão responsável no cuidado de toda vida. Proporemos, sem impor, alternativas para o cuidado da vida a partir da perspectiva do evangelho de Jesus, para fazê-lo no momento oportuno e com tolerância construtiva. Mas, ao contribuir com um diálogo plural a partir de perspectivas evangélicas, não centraremos a contribuição dessa tradição em citações de documento eclesiásticos oficiais. Partiremos da palavra de Jesus: “Eu vim para que tenham vida e para que a tenham em abundância” (João 10, 10), para exortar com linguagem positiva e esperançosa, que anime a viver e a vivificar-nos mutuamente.

5. A acolhida responsável do processo humano de nascer deve realizar-se no marco do respeito à dignidade e dos direitos da mulher com relação à reprodução. Reconhecemos a necessidade de revisar a fundo a própria tradição, no que se refere aos enfoques sobre gênero, sexo e relações humanas, para superar os limites de uma teologia muito condicionada por pessimismos, maniqueísmos, estoicismos ou puritanismos. “Vós me tecestes no seio de minha mãe” (Salmo 139, 13) é um texto programático que convida a respeitar o processo constitutivo de uma nova vida – caminho e não momento instantâneo –, acompanhando-a com o processo humano de acolhê-la responsavelmente, de acordo com a graduação de tal exigência de respeito segundo as fases de sua formação. Sem levar a sério a educação sexual integrada – incluídas a anticoncepção e a intercepção responsáveis –, carecerão de credibilidade os esforços pela proteção do feto.

6. O acompanhamento responsável do processo humano de morrer inclui o respeito ao direito de decidir como viver a fase final desse processo digna e autonomamente. Teremos que redescobrir e reapreciar elementos esquecidos da própria tradição terapêutica corpóreo-espiritual; por exemplo, assumir a morte e tomar autonomamente as rédeas do processo de morrer. Mas teremos presentes as deficiências da própria tradição, no que se refere às cisões dualistas entre o ser humano e a natureza ou entre o corporal e o psíquico; para poder recriar uma teologia da criação capaz de valorizar e libertar a terra, o corpo e a vida. “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11, 25). A tradição da moral teológica católica ajuda a discernir situações de limitação do esforço terapêutico, legal, ética e teologicamente correta.

7. Não se deve fazer da dor um ídolo. Deve-se fomentar seu alívio e assegurar o acesso igual aos cuidados paliativos. “Ainda que exteriormente se desconjunte nosso homem exterior, nosso interior renova-se de dia para dia” (2 Coríntios 4, 16). Não se deve fazer da dor um ídolo, que temos direito a aliviar, incluída a sedação oportuna, medicamente indicada e devidamente consentida e protocolizada. A tradição católica ajuda a evitar criminalizações injustas, como, por exemplo, a das irresponsáveis acusações do caso Lamela vs. Leganés [1].

8. É responsabilidade ética apoiar a investigação científica para curar, melhorar e proteger a qualidade do viver. Reconhecemos a necessidade de soltar o lastro da própria tradição, para que uma teologia, que durante muito tempo desvalorizou a tecnociência, não naufrague. Cultivar a terra, sem ficar de braços cruzados esperando o dom do céu, é o começo da tecnologia, missa do ser humano, para quem é natural modificar artificialmente a natureza com a tecnologia, desde uma atitude de respeito à natureza. A teologia da criação fomenta o diálogo para aprender da ciência.

9. Admirando e agradecendo pelos avanços científicos, fomentaremos as aplicações da investigação ao serviço da terapia. Mas o cuidado da vida deve se estender ao conjunto dos seres vivos e dos ecossistemas. “Esperamos novos céus e uma nova terra, nos quais habitará a justiça” (2 Pedro 3, 13). A Bioética inclui a Ecoética. Não basta ter passado do paternalismo à autonomia; deve-se globalizar e ecologizar a ética da justa distribuição dos recursos da vida.

10. O cuidado da vida deve incluir também a responsabilidade com as gerações futuras. Por isso, teremos sempre presentes as perguntas motrizes do movimento bioético: “É responsável e vale a pena fazer o que for possível fazer tecnicamente? Para quem serão os benefícios?”. Assim, enfocaremos qualquer problema bioético, captando seu aspecto social. Jesus repartiu o pão da vida, mas para todos e todas. Essa ética global da justiça é, por sua vez, ética da vida. Para nós, estão unidos o não à guerra, ao assassinato e à pena de morte, o não às interrupções injustas do processo de nascer e o não às prolongações injustas do processo de morrer, assim como o não à destruição do ambiente e à dilapidação dos recursos da vida. Esse quer ser o nosso compromisso como cidadãos, como fiéis e como teólogos e teólogas, em colaboração com todos os profissionais, grupos sociais e organismos humanitários que trabalham para melhorar as condições de vida e aliviar o sofrimento da humanidade e da natureza.

Notas:
1. Após denúncia anônima, uma comissão de especialistas, nomeada pelo conselheiro de saúde Manuel Lamela, identificou 73 casos suspeitos de sedação inadequada no hospital Severo Ochoa, de Leganés, na Espanha, entre setembro de 2003 e março de 2005. O trabalho identificou uma relação direta entre a administração irregular de sedativos e a morte desses 73 pacientes.
(O texto é do IHU/Unisinos, 23/12/2008.)

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