segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

DA CORDIALIDADE À INSOLÊNCIA


Roberto DaMatta
diz que a identidade brasileira
está mudando

Era para ser uma conversa sobre Gilberto Freyre, no dia em que Roberto DaMatta proferiria palestra sobre o autor de Casa Grande & Senzala. De início, até foi: atendendo ao pedido de ZH, o antropólogo carioca percorreu o Santander Cultural comentando manuscritos, fotos, instalações e até pinturas da mostra Gilberto Freyre – Intérprete do Brasil. Mas não demorou para o papo enveredar da formação da identidade brasileira para a transformação – na verdade, para as muitas transformações conseqüentes, por exemplo, da globalização e da escalada da violência urbana.
Confira os principais trechos da entrevista com o antropólogo.
GILBERTO FREYRE POLÊMICO
“Uma das características do pensamento de Gilberto Freyre que sempre desagrou parte da intelectualidade brasileira é o fato de ele nunca ter dado receita sobre como melhorar o país. Ele nunca apontou ‘problemas’ ou ‘soluções’ brasileiras. Só mostrou o que acontece. É muita pretensão es­tudar uma sociedade e sair fazendo juízo de valor sobre ela. Quem estuda os índios agora vai ser cobrado por julgar se eles estão corretos em andar pelados? Julgar não é tarefa do antropólogo. Mas isso não significa que o pensador deve aceitar tudo o que a sociedade impõe, não dar opinião sobre ela, não lutar por transformá-la, se for o caso. Isso é outra coisa. Falo de postura de pesquisa.”

A ATUALIDADE DE GILBERTO FREYRE
“Freyre nunca tentou explicar o Brasil, como fizeram Darcy Ribeiro e, em certa medida, Florestan Fernandes, entre outros. Ele é um intérprete do país, não um ‘explicador’, alguém que se guiou pela pergunta ‘o que é o Brasil?’, e não por afirmativas do tipo ‘como é e como deveria ser o Brasil’. O fato de ter construído uma obra assim é justamente o que o torna atual, pertinente até hoje. Outra coisa importante sob esta perspectiva é que Freyre viveu na primeira sociedade republicana moderna do planeta, que foi a dos EUA nos anos 1920. Lá teve a experiência de conviver com as diferenças raciais e com mani­festações marcantes nesse sentido. Em seus diários do Texas, por exemplo, descreveu a cena do linchamento de um negro. Quando voltou, tornou-se referência para uma geração inteira de modernistas pernambucanos, por, entre outras coisas, trazer para cá a visão de como essas diferenças se manifestavam por lá. Também mostrou à intelectualidade que não era destruindo o passado que se escreveria um presente melhor, como muita gente acreditava à época. Não fosse por ele muitas casas e igrejas construídas anteriormente talvez tivessem sido postas abaixo, mesmo sendo patrimônio nacional. A onda modernista nacional, sobretudo a de Recife, deve muito a Gilberto Freyre.”
NÃO SABEMOS MUDAR O BRASIL
“Quando o Brasil se tornou república, mudou tudo, do nome do país à bandeira. Só se esqueceram de preparar a nação para as mudanças. E nós não aprendemos – hoje em dia tudo continua igual: mudamos o código de trânsito sem ensinar a sociedade a utilizá-lo, aplicamos a lei seca sem antes ter conversado direito sobre ela. O resultado é que não conseguimos que a sociedade agisse naturalmente com essas novidades. Muita gente perdeu a carteira de motorista e não foi reeducada. O comportamento, em geral, para além de alguns números bons a curto prazo, não mudou. Não sabemos mudar o Brasil.”
ÀS PORTAS DA TRANSFORMAÇÃO
“Para você mudar uma sociedade, precisa duas coisas: uma percepção interna das pessoas de que é preciso mudar e o exemplo de outros países que mudaram diante de determinadas medidas. A percepção interna está aí – é unanimidade nacional que há uma crise de ética, que os políticos não podem continuar com o comportamento que em geral possuem, que a polícia não pode ser mais fraca que o crime nas grandes cidades etc. A percepção externa também – há inúmeros exemplos de países que ultrapassaram o Brasil em rankings de desenvolvimento e qualidade de vida investindo em setores que, aqui, não recebem a devida atenção, como a educação. Os elementos transformadores estão aí, prontos a impulsionar mudanças.”
VIVEMOS NA INSOLÊNCIA
“Vivemos um impasse. Hoje faz bem menos sentido a gente pensar no brasileiro malandro, leve, cordato, afável. O brasileiro está, sem dúvida, mais fechado. O trânsito se tornou uma verdadeira barbárie. Saio da minha casa em Niterói, todo dia, em direção ao Rio, pedindo para não ser morto antes de voltar. Diante disso, não há como não se tornar ao menos um pouco menos alegre. Em âmbito familiar, dentro de casa, até conservamos a cordialidade que é uma marca do país – em alguns casos, claro. Fora, no entanto... Vivemos na insolência."
MENOS JEITINHO BRASILEIRO
"Algo que ficou mais evidente hoje em dia é o relacionamento ruim do brasileiro com as regras sociais. Isso já existe há bastante tempo, mas está ressaltado atualmente. Somos uma sociedade patriarcal, nossas relações sociais têm base nas relações familiares. A educação básica também funciona muito mal no país. O que significa que é a família, cada vez mais, a principal responsável pela formação dos cidadãos. Uma das conse­qüências disso é que levamos para fora de casa a informalidade das relações estabelecidas dentro de casa. A informalidade e também a indisciplina. O que não é exatamente de todo bom.”
DEPOIS DA LIBERDADE, A IGUALDADE“
A liberdade, nós, brasileiros, já conquistamos. Agora começamos a descobrir que precisamos mais que isso, precisamos da igualdade. A liberdade, sozinha, cria uma sociedade profundamente violenta – e é exatamente isso que a gente está vendo no país neste momento. Se a liberdade promover a desigualdade, acentuá-la, é porque aí há um problema. É preciso intervir. O Estado deve fazer essa intervenção – mas é preciso, também, que esse processo chegue à família. Como já dissemos, a educação, no Brasil, está muito intimamente ligada à família.”
daniel.feix@zerohora.com.br
(A reportagem é de DANIEL FEIX, Zero Hora, 01 de dezembro de 2008)
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2313514.xml&template=3898.dwt&edition=11212&section=999

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