segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Sintoma e Dinheiro: surto especulativo


Clara de Góes
PSICANALISTA

"Mas a luz/ é a sombra do nada", escreveu o poeta espanhol Antonio Gamoneda, assim como o dinheiro fez-se a sombra desencarnada de coisa nenhuma, repetindo um modo de operar que se apresenta como uma forma de gozo, gozo, a respeito do qual não se quer saber nada. A crise financeira que se torna uma crise econômica é produzida como um sintoma, como uma formação do inconsciente freudiano. A crise, assim como o sintoma, não é uma aberração vinda de fora. Ela é a repetição de um modo de ser ao qual a consciência sucumbe. O dinheiro enfeitiça porque parece ter vida própria.

Entretanto, apesar de seu caráter fantasmagórico, tem um lugar muito bem definido, qual seja, o lugar de representar o valor das mercadorias. O valor, não o preço. O valor nos remete à produção, ao trabalho e ao tempo, enquanto o preço se constitui no mercado, no âmbito da circulação das mercadorias. Aí o dinheiro parece brotar... mas dinheiro não nasce em árvore. Não nasce em árvore, mas voa feito passarinho.

A cada surto especulativo sucede uma crise que, se varia em sua abrangência social, é certa em seu comparecimento cíclico. Instaura-se, na dinâmica do capital, uma estrutura de repetição que remete ao modo de produção das formações sintomáticas do inconsciente. Talvez por isso Lacan tenha dito que Marx, e não Freud, era o inventor do sintoma: as crises não se inscrevem como memória.

Galbraith, em sua Breve história da euforia financeira, diz que há poucos domínios da atividade humana em que a história e a memória contem tão pouco. Por que essa memória não se faz história? Certamente não é por um erro de cálculo. O que acontece é que na construção da realidade comparece o desejo inconsciente assim como a exigência pulsional de satisfação. Em outras palavras, a memória não é autônoma frente ao desejo e aos imperativos da pulsão. A memória não se inscreve como história, o que acarretaria a implantação de políticas públicas de controle da especulação, porque isso implicaria a aceitação da castração diante da promessa de um gozo infinito... que é o que o capital promete ao mesmo tempo em que se constrói sobre essa fantasia mortal. Assim, os agentes se pautam pela insígnia neurótica, "não quero saber nada disso". Acreditam na soberania do mercado amarrando-se ao próprio delírio tanto mais forte porque articula em torno de si um tipo de laço social: a sociedade burguesa que nega a intervenção do Estado na medida mesma em que conta, absolutamente, com ela. Não se trata, é bom sublinhar, de manipulação, mas de delírio... e o delírio se faz sempre em torno de um fragmento de verdade. Alguns ficam ricos (!) enquanto o resto suporta as conseqüências da promessa de um gozo sem limites que só pode levar à morte. "Não quero saber nada disso" equivale a "me deixe gozar em paz", vale dizer, até morrer.

http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatexto.asp?pg=jornaldobrasil_117610/100993 08/12/2008

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