Rubem Alves
Meu Deus:
Estranho pedido este que fazemos:
que o teu nome seja santificado.
Um nome é tão pouca coisa:
um som que se diz e logo dele não se tem mais notícia. Como a brisa que passa sem deixar vestígios; um discreto toque na pele;
pequena onda na superfície do lago, ali onde a criança jogou a pedrinha... Mas logo a água
estará lisa de novo, como se nada tivesse acontecido.
Nomes: nós os dizemos no lugar da coisa, como se fossem imagens, cópias, criaturas de
fundos de espelhos.
Olho-me. Vejo a minha imagem, dentro do vidro liso. Em tudo igual a mim. Estendo a mão para tocar-me. Mas esbarro no meu próprio dedo. Parece que meu reflexo teve idéia igual e também quis, de dentro do espelho, tocar-me, aqui de fora.
Viro o espelho para o jardim. O jardim aparece, magicamente, dentro dele.
A Cecília, olhando para o corpo de sua avó morta, o via como um espelho onde se refletia o universo inteiro.
Que imensa a distância entre a coisa e o nome: a coisa, solta no espaço: o nome, sopro que mora na memória, e que basta chamar para chegar...
Mas os reflexos nunca saem de dentro dos espelhos. Por isto são fracos. Eternos prisioneiros do vidro.
Nomes: como os reflexos, prisioneiros dos sons. E que pode um som, num mundo de coisas fortes e duras?
Por que santificar o teu nome?
Não seria melhor santificar a ti mesmo? Por que não abraçar a pessoa real, fora do espelho, a tentar a carícia impossível na imagem, dentro do vidro?
No mundo das estórias infantis, os reflexos saem do fundo dos espelhos e entram no mundo de cá. Alice fez o contrário: passou pelo vidro, entrou lá, no mundo mágico e impossível dos reflexos.
Magia: os nomes são mais poderosos que as coisas, exorcizam demônios, invocam, do passado e de distâncias infinitas, objetos que se tornaram ausentes. Os mortos voltam sorridentes, cheios de vida. Pela magia do seu nome.
Será isto possível, que dos nomes surjam coisas, que do verso nasçam universos, que poemas se façam corpos, que o Verbo se faça carne? Será possível que de nomes nasçam mundos e corpos? “No princípio era a palavra...” Tudo depende de como eles são ditos.
Amo as árvores. Sinto-me ligado a elas poética e misticamente. Já determinei que desejo ser cremado, quando morrer, e minhas cinzas deverão ser colocadas ao pé de um caquizeiro. Por que um caquizeiro? Isso é uma longa estória...
Não sei quantas árvores já vi. É impossível dizer. Há reflexos que nunca mais aparecerão: árvores que estiveram dentro de mim, das quais me esqueci, não ficaram guardadas: faltou amor. Só o amor transforma imagens de dentro dos espelhos em coisas vivas. Mas há outras que o amor eternizou.
Uma jabuticabeira que não existe mais, coberta de flores e abelhas. Uma paineira sob cuja sombra nos assentávamos à noitinha, para contar casos de assombração. Também uma figueira que plantei no alto de uma colina em cuja sombra não me assentarei. E os ipês amarelos nos pastos secos de Minas.
Não, estão aqui, neste escritório onde escrevo. E, no entanto, quando digo os seus nomes, elas acordam e me fazem sorrir... Elas são parte dos meus cenários interiores: eu sou elas. Símbolos de uma saudade e de uma esperança, meu corpo se inclina para o passado, tristeza de coisas perdidas, nestas árvores. Quando os seus nomes são pronunciados sinto delinearem-se, dentro de mim, contornos dos meus desejos. Porque desejo árvores, sei que, em mim, vivem as ausências dessas árvores que gostaria de reencontrar. O nome, se torna "invocação": um chamado que vem de dentro. Não, não as vejo, essas árvores que amo. Mas, na sua ausência, eu me lembro dos seus nomes. E, quando os digo, uma parte do meu corpo se comove. Meu nome também é árvore...
Um nome, às vezes, é tudo o que temos.
Estou sozinho. Através do vidro vejo as árvores sem folhas. É o inverno. Cascas secas enrugadas. Um bando de patos selvagens contra um céu cinzento. Vejo: meus olhos são espelhos. As coisas que vejo, reflexos. Mas, junto dos reflexos há formas que não deveriam estar aí. Não vieram de fora. Chegaram de dentro. Colocaram-se no meio das árvores e do céu cinzento. Meu cenário ficou como um sonho, só meu, surrealista. Foram nomes que se meteram neste mundo. Nomes de coisas e pessoas ausentes. Por que se meteram? Talvez porque eu desejo que, de repente, não mais que de repente, o pranto se faça riso e o amigo distante se faça próximo. O Inverno seria menos triste e o cinzento ficaria alegre.
Como os nomes são diferentes dos reflexos! Os reflexos só repetem o que os olhos vêem. Já os nomes transformam ausências em presenças e marcam o lugar das coisas invisíveis. Os reflexos deixam o mundo como está. Os nomes são mágicos: transfiguram tudo. O mundo se torna altar, lugar de uma invocação universal, pedido de que o ausente volte novamente.
Nunca mais li Os Lusíadas. Desde a minha adolescência.
Mas não me esqueci de certos versos. As palavras do poeta, dirigidas a Inês de Castro, apaixonada, andando sozinha, puro transbordamento de alegria “... dizendo aos campos e às ervinhas o nome que no peito escrito tinhas”.
Seu amado, longe. Ali, enquanto andava, só uma coisa, um nome gravado na carne: seu corpo estava possuído por ele. E tudo ficava mágico, maravilhoso.
Nossos corpos: pele, músculos, sangue, ossos: pedras de um altar.Mas, neste altar, há um nome que é dito, como invocação, e dele surgem mundos.
O teu nome, gravado em nosso peito, e assim vamos dizendo aos campos e às ervinhas...
Agora penso que entendo.
É preciso santificar o teu nome porque ele é uma taça vazia onde a alegria é servida...
Rubem Alves é escritor, teólogo e educador (Publicada em 07/12/2008)
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1610245&area=2220&authent=666512711326526647125313045244
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