segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

ESPAÇO PARA VOAR

Rubem Alves*
“Olhai as aves dos céus:
não semeiam,
não colhem,
não ajuntam em celeiros...
Contudo vosso Pai,
também dos céus como as aves,
as sustenta”
Quando eu era pequeno gostava de me deitar no capim, barriga para o ar, e ficava olhando os urubus, pontos negros voando nas funduras do céu.
Eu tinha inveja deles. Imaginava as coisas que eles viam e eu não. E pareciam tão leves, livres, naquele espaço imenso, enquanto eu ficava preso ao meu peso e aos caminhos já trilhados e cercados. Como se eu fosse um animal doméstico e eles selvagens, soltos...
Acho que foi daí que nasceu o meu fascínio pelas pipas. Elas são o mais próximo que posso chegar de voar. Sei que o brinquedo que minhas mãos construíram e fizeram subir ao vento está lá em cima, próximo dos urubus. Como se a pipa fosse uma extensão do meu corpo...
Não é assim com todo mundo? Às vezes fico olhando para as pessoas: olhares perdidos, atravessando as imensidões do céu, como se fosse no azul infinito que moram as coisas das quais sentem saudades.
Que será que quer dizer este fascínio com o céu? É estranho, porque o céu nada mais é que um imenso vazio. Se assim não fosse, como poderiam por ele trafegar as nuvens? Os pássaros não poderiam voar — não é isto que é o vôo, um mergulho no vazio? E o arco-íris e as estrelas, não os poderíamos ver.
Vazio: é uma palavra triste, que diz de solidões e distâncias, abandono. Como o deserto onde não mora nada; ou a noite de insônia em que todos fugiram de nós, mergulhados no sono em que estão; ou o quarto irremediavelmente silencioso e quieto, depois da partida.
Mas isto será tudo o que o vazio contém?
Penso nas mãos que se juntam em concha, para acolher no seu vazio a água que corre da bica...
Os braços que se abrem para o abraço, marcando com este gesto o vazio reservado para a pessoa amada que ainda não chegou...
O ventre da mãe, vazio quente/escuro onde a vida vai crescendo...
E que dizer do colo? Vazio que acolhe.
Os vazios que acolhem são sempre amigos: o silêncio que não pede palavra alguma, contentando-se com a presença muda; a casa onde se encontra sempre um espaço onde descansemos; o lugar a mais que se coloca à mesa, declaração de alegria, para o hóspede que chegou...
Céu, vazio imenso que acolhe, espaço que se abre para a vida, convidando ao vôo. E os pássaros brincam. Vêem agora? Havia razões para a minha inveja. Eu ouvia o convite mas não podia juntar-me à brincadeira. Olhava, e só sentia um destino...
“Olhai as aves do céu...”
Já pensaram no terrível da presença? Os móveis parafusados ao chão; o relógio; as contas que chegam; aquela mesma voz estridente e ardida; as pessoas abundantes que transbordam, afogando a todos com torrentes incontroladas de palavras; as pessoas na sala de espera; o outro ao nosso lado, no elevador; aquele enorme olho perseguidor que um artista perseguido por seus medos colocou na tela, como se fosse olho de Deus, sem pálpebra, para nunca fechar...
Na presença está o olhar que acusa, a gente que proíbe, a resistência que interdita, o rosto que ameaça, a palavra que recusa. O vazio, ao contrário, é a pura permissão: o espaço que o outro abre para que eu possa viver como o céu se abre para os urubus...
É isto que amamos nos outros: o lugar vazio que eles abrem para que ali cresçam as nossas fantasias. Buscamos, no outro, não a sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta; não a solidez do músculo, mas o colo que acolhe... Como seria bom se as outras pessoas fossem vazias como o céu, e não tão cheias de palavras, de ordens, de certezas. Só podemos amar as pessoas que se parecem com o céu, onde podemos fazer voar nossas fantasias como se fossem pipas...
Vazio é isto: lugar bom para desejos e fantasias. Até dizemos: “Está com a cabeça nas nuvens”
— nuvem é coisa fofa, que aceita qualquer pensamento. E brincamos de olhar para elas e ver coisas, e vemos sempre aquilo que a nossa imaginação criou. Também chamamos de “avoado” a um moço que sonha — o que mostra que, lá no fundo, sabemos que os sonhos e o vôo pelo vazio se pertencem. Sonhamos acordados: os olhos fogem das coisas. Podem estar nelas fixados, hipnóticos, imóveis. Só que eles nada vêem das presenças, as coisas se tornaram transparentes, diáfanas, e, através delas, o desejo só vê o seu próprio sonho.
Nos vazios moram a nostalgia, a espera, a palavra que balbucia, numa “Por favor, volte logo!”
As presenças são os ídolos: as coisas que enchem espaço, as aves se domesticam, trocam o selvagem pela facilidade das rações distribuídas a granel. A televisão: sua boca vomita objetos sem fim. Acomodamo-nos a um espaço entulhado de imagens ordens,: casa onde tudo se encontra pronto, móveis, torradeiras, fornos elétricos, espremedores, centrifugadores, liqüidificadores, máquinas de secar, escovas elétricas, engraxador de sapatos, saca-rolhas por pressão pneumática e outras maravilhas... Só não há lugar para o vôo orgulhoso do urubu, nas alturas...
Deus mora nos céus, não no céu dos religiosos mas no céu dos urubus...É bom que assim seja.

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