quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Estamos usando mais de uma Terra

Rose Marie Muraro*



Segundo recente pesquisa do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), a humanidade está gastando hoje em consumo e desperdício 1,3 Terra. Isto é, estamos estressando a nossa mãe Terra em mais de 30% do que aquilo que ela nos pode dar, o que é absolutamente espantoso.


Fico pensando na China. Esse país hoje consome mais recursos básicos do que os EUA, com exceção do petróleo. Seu consumo de carne é o dobro do registrado nos EUA e o de aço é o triplo. O que acontecerá se a China alcançar os EUA em consumo per capita?


Vamos, por um exercício de futurologia, ao ano de 2031. Se o crescimento chinês se reduzir a 8% ao ano, em 2031 sua renda per capita será a mesma dos EUA. Imaginemos que os chineses tivessem o mesmo padrão de consumo que os americanos nesse ano. A população então, em termos conservadores, subindo para 1,5 bilhão de habitantes, consumiria o dobro da atual produção de papel e teria cerca de 1,1 bilhão de carros. Em todo o mundo hoje, o número de carros não passa de 800 milhões e o consumo mundial de petróleo é de 85 milhões de barris por dia. Na situação citada, só a China consumiria 99 milhões de barris por dia.


Isso tudo, colocado em conjunto, nos mostra que na terceira década deste século não usaríamos apenas uma Terra mais 30%, e sim, no mínimo, 2,5 Terras, também em termos conservadores, porque temos que considerar a Índia (cuja população, então, será maior que a da China) e outros países periféricos a quem foi empurrado goela abaixo o sonho de consumo americano. E o que isso nos ensina? Simplesmente que o modelo econômico ocidental centrado em combustíveis fósseis, no uso de minérios e no desperdício, não vai mais funcionar no mundo. Já hoje há mais de 3 bilhões de pessoas nos países em desenvolvimento, e se não reestruturarmos a partir de agora a economia mundial, o crescimento econômico será insustentável.


A esses números, que extraímos de Lester Brown, provavelmente o maior ecologista da atualidade e autor da série The State of the World, publicada anualmente pela ONU, acrescem-se números opostos, desta vez da Food and Agriculture Organization (FAO) sobre a fome no mundo. Depois da inflação no preço das commodities em 2008, o número de pessoas famintas no mundo, que já era de 824 milhões de pessoas, ganhou mais 100 milhões. E isso não foi pelo fato de os chineses e indianos se alimentarem mais, mas porque os países mais pobres empobreceram ainda mais. Até os anos 1960 eles podiam saciar a fome porque sua agricultura era pesadamente baseada na agricultura familiar, e a partir desses anos eles foram obrigados pelas dívidas que tinham com o FMI a transformar suas multiculturas em grandes monoculturas para a exportação. Assim, com a sua fome, aumentavam o excesso de alimentação dos países mais ricos. Foi esse o efeito mais perverso da globalização.


Só o modelo baseado na solidariedade, no desestímulo ao consumo supérfluo, na descentralização econômica, tal como se usava nos tempos primitivos em que as comunidades geriam os pré-estados, é que poderemos pensar em uma sobrevida para a humanidade. Mas é muito difícil sairmos de um modelo de poder político e econômico centralizados, de uma competição cada vez mais violenta, para um modelo realmente democrático em que as populações tenham influência sobre os destinos do Estado, tal como já está acontecendo hoje, por exemplo, na Europa nórdica, onde a corrupção das elites é menor, inclusive pelo grande número de mulheres existentes nos primeiros escalões dos governos. Segundo informações do Banco Mundial, há uma correlação estatística significativa entre o aumento das mulheres nos primeiros escalões e a diminuição da corrupção, o que faz com que os fluxos de dinheiro governamental sejam realmente alocados às populações que dele mais necessitem.


Não podemos mais aceitar um mundo em que nos anos 1990 o PIB cresceu 134% e a miséria 1000%. É essa ganância dos mais ricos, que distorceram todas as estruturas de poder, que está matando a humanidade. Crises como a que estamos vivendo tendem a repetir-se e acelerar-se cada vez mais, tais como os furacões se aceleram quando o clima foi desequilibrado.


Estamos chegando à hora do impasse final, em que os senhores do dinheiro estão sendo confrontados com uma força maior do que a sua, a de nossa mãe Terra, que não quer ser assassinada. Ou mudamos todos ou acabaremos.

*Escritora
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 25/12/2008

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