terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Desconstruindo o terror (I)

O antropólogo, psicólogo, professor e pesquisador Scott Atran, convidado pel Otan para estudar o fenômeno do terrorismo suicida, desfaz mitos sobre seus combatentes em entrevista à Primeira Leitura, aponta erros graves da administração Bush na luta contra o terror e mostra-se pessimista com o futuro.
Por Caio Blinder

NOVA YORKScott Atran detona muitos mitos sobre o terror e sua legião de operário em conferências, artigos e nesta entrevista à Primeira Leitura. Antropólogo, psicólogo, professor e pesquisador da Universidade de Michigan, em Ann Arbo, e do Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, Atran racionaliza e rechaça o moralismo equivocado, maniqueísta e, por que não dizer?, camicase. Afinal uma política errada de combate ao terror também é autodestrutiva. Claro que o terror suicida repulsa, mas também indigna tanta insensatez dita e escrita sobre a ameaça. Um grande inimigo de Atran é o estereótipo: o terrorista suicida é um amalucado, desesperado e desqualificado a serviço de uma causa insana. Nem a CIA mergulha nessa cascata. O doído não pode ser “um assassino efetivo”, diz Atran, que foi convidado pela Otan para iniciar um grupo de trabalho científico para estudar o fenômeno do terrorismo suicida. Vejamos parte da entrevista:

Primeira Leitura: Professor, vamos começar do básico, didaticamente. Defina terrorismo.
Scott Atran: Não há definição. O próprio Departamento de Estado dos EUA diz que não há uma única definição que seja aceitável por todos. Mas, para finalidades de análise estatística, o governo americano recorre à seguinte definição: violência premeditada, politicamente motivada e perpetrada contra alvos não-combatentes por subgrupos nacionais ou agentes clandestinos, usualmente destinada a influenciar sua audiência. Obviamente, por essa definição, o que para um lado é terrorista para outro é combatente da liberdade. Se levarmos a definição ao pé da letra, os combatentes da liberdade da resistência francesa antinazista eram terroristas. O mesmo valia para os “contras”, que combatiam a revolução sandinista com patrocínio do EUA. Para Ronald Reagan, insurgentes islâmicos anti-soviéticos no Afeganistão eram combatentes da liberdade. Para George W. Bush, os insurgentes islâmicos são fazedores do mal.

Primeira Leitura: Mas não é possível que não haja uma definição política aceitável do que seja terrorismo...
Scott Atran: Terrorismo é um método, não uma agenda política. É usado por pessoas mais fracas quando combatem outras com avassaladora superioridade militar. O contexto do uso desse método é relevante. Isso não quer dizer que seja moralmente relativo explodir pessoas sem nenhuma associação com a luta. Mas a forma como o terror é usado politicamente é sempre muito oportunista.

Primeira Leitura: A expressão “terrorista suicida” em vez de “terrorista homicida” não suaviza a dimensão do ato?
Scott Atran: Não há informação suficiente na expressão “terrorista homicida”. É um suicídio que torna aquela pessoa diferente de outros combatentes. Falar em terrorista homicida tem uma razão política de ser, e não é à toa que o termo é usado por veículos de mídia de direita como a Fox. Aqui há uma definição clara: terrorista suicida recorre à autodestruição tipicamente contra não-combatentes. Embora o terror suicida seja destinado a destruir fisicamente um alvo, seu uso principal é como arma de guerra psicológica.

Primeira Leitura: Na sua avaliação, não existe o perfil psicológico do terrorista suicida. Como o Senhor chegou a essa conclusão?
Scott Atran: Não há muitos estudos, mas já se acumulam evidências de que não existe esse perfil psicológico, mesmo em informes da CIA e de outras agências de inteligência.

Primeira Leitura: Ariel Merari, professor da Universidade de Tel Aviv, argumenta que os terroristas suicidas não são simplesmente suicidas. Afinal, o que são eles?
Scott Atran: São indivíduos altamente engajados, inteligentes, espertos, pacientes e dispostos ao sacrifício em nome de um programa político, geralmente com motivações religiosas.

Primeira Leitura: Mas como se convertem em terroristas suicidas?
Scott Atran: É um processo gradual. Antes de tudo, precisamos de grupos pobres em recursos e incapazes de competir com exércitos para conseguir recrutas. Esses grupos não podem oferecer incentivos a curto prazo, como salários, promoções e recompensas materiais. Mas os recrutados não podem ser desesperadamente pobres, porque estariam lutando apenas por comida. Eles são pessoas dispostas a adiar a gratificação, em geral mais bem-educadas e mesmo em melhores condições de vida do que o resto da população. Esses recrutas são atraentes porque, por exemplo, se alguém investe em educação, é sinal de um compromisso com o futuro. E, nesse sentido, grupos Jihadistas não são diferentes de esquerdiastas na América Latina motivados por razões ideológicas, anarquistas na Rússia pré-revolucionária etc. O que é singular com os jihadistas é o fato de a compensação não ser deste mundo. Os recrutas se sacrificam pelas gerações futuras. Isso não é inusitado para grupos religiosos, embora seja singular para quem acredita em uma ideologia transcendental. Comunistas também acreditam em leis históricas que vão afetar gerações futuras.

Primeira Leitura: Como é possível persuadir pessoas racionais a morrer por uma causa?
Scott Atran: Por meio de um processo de doutrinação e da criação de um senso de dever a uma fraternidade; mas, de novo, precisamos tomar cuidado com as definições. Depende do que entendemos por racional. Em termos da relação custo-benefício, não há especulação racional porque essas pessoas estão desistindo de suas vidas, do seu futuro. Mas, em termos do que somos como seres humanos, a seleção natural nos oferece certos caminhos para superarmos auto-interesse racional de curto prazo. Outros dois bons exemplos são o amor romântico e a vingança.

Primeira Leitura: Mas de quem é a responsabilidade?
Scott Atran: De organizações recrutadoras que transformam pessoas em bombas humanas. Elas manipulam desejos universais sinceros. São desejos que evoluem biologicamente, como aqueles que levam à ascensão de sentimentos religiosos. O mesmo acontece com a indústria pornográfica ou de fast-food, que manipulam o indivíduo para fins que beneficiam a organização. Exércitos não são diferentes para manipular indivíduos.

Primeira Leitura: Aqui somos forçados a um desvio das reflexões sobre terror para um comentário sobre as torturas de prisioneiros iraquianos por guardas americanos. E não dá para escapar de referências a Hannah Arendt (leia resenha sobre a filósofa nesta edição). Dá?
Scott Atran: De fato, a tese dela era a de que as pessoas encarregadas do Holocausto nos campos de concentração nazistas não eram lunáticas. Eram pessoas normais que foram recrutadas pela organização. No caso dos guardas americanos no Iraque, a norma é a normalidade entre aqueles que praticam abusos. É previsível que tal comportamento não seja aceito pelo governo americano. São apenas algumas maçãs podres. Em uma cultura individualista como a dos EUA, sempre existe a responsabilidade individual, e não fatores sociais. O mesmo se aplica ao terrorista suicida. É um maluco que degola e decapita. Mas indivíduos são capazes de fazer coisas terríveis em algumas circunstâncias. Por essa razão, é tão difícil traçar o perfil psicológico do terrorista suicida. Eles são nós.
(Reportagem da revista PRIMEIRA LEITURA, Ed. nº28, junho/2004, pp.24/27)

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