terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Só nós podemos entender


CLÁUDIO MORENO

Os deuses do Olimpo são quase iguais aos humanos. Em tudo são parecidos conosco. Como nós, eles também adoram reunir-se à volta de uma mesa para comer e beber com os amigos – não a carne, o pão e o vinho, rudes produtos da terra, mas a ambrosia e o néctar, alimentos divinos que o homem desconhece. A música também os encanta: vibram com a voz melodiosa das Musas e os sons da lira de Apolo. Repousam como nós: a noite escura vai encontrá-los na paz de seu leito, e a Aurora dos dedos róseos faz romper a claridade da manhã para todos, deuses e homens, indistintamente. Quando choram, vertem lágrimas salgadas como as nossas; quando fazem amor, compartilham dos mesmos fluidos e das mesmas umidades.
Em contato com o ferro afiado, sua pele se rompe como a nossa, e a dor do ferimento é sentida com a mesma intensidade. Pois Homero não nos conta o quanto sofreu Afrodite ao ser ferida durante a guerra de Tróia? Para salvar Enéias, seu filho, que estava prestes a ser abatido pelos gregos, ela tinha se aventurado no ponto mais aceso do combate; furioso por ver sua presa escapar, Diomedes não hesitou em atingir o delicado pulso da deusa com um pontaço de lança, fazendo-a desferir um grito lancinante. Cega pela dor, Afrodite bateu em retirada; a pele alvíssima de seu braço começava a enegrecer em torno da chaga aberta, de onde jorrava não o sangue abundante dos mortais, mas o líquido claro e perfumado que corre nas veias dos deuses.
São quase idênticos a nós. Quase – não fossem duas diferenças essenciais. A primeira é sua perpétua juventude: eles nascem como qualquer um, crescem até uma determinada idade e estacionam ali, indefinidamente – Zeus será para sempre um homem adulto, na força da idade, enquanto Apolo nunca deixará de ser um jovem imberbe; no Olimpo, os dias não envelhecem. A segunda, muito mais decisiva, é a imortalidade, porque os deuses, “os que nasceram para sempre”, são eternos como o Tempo. No mundo divino, a morte é desconhecida.
Por causa disso, um pensador antigo sugeriu que é natural que os deuses tenham, a respeito da morte, uma grande curiosidade – talvez até uma ponta de inveja. Assim como água não tem muito sabor para quem não conhece a sede, assim os deuses, que não precisam morrer, não conseguem perceber o quanto a vida tem valor para quem sabe que vai perdê-la. Nenhum dos imortais do Olimpo pode entender a sabedoria das palavras de Bobbio, quando define nossa humana condição: os que levam a morte a sério levam também a vida a sério – aquela vida, a minha vida, a única que tenho.
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(Zero Hora, 02 de dezembro de 2008)

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