quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O AMOR PRECISA DA RAZÃO?

ZYGMUNT BAUMAN*

O amor teme a razão; a razão teme o amor. Cada um tenta viver sem o outro. Mas sempre que o fazem, o problema fica guardado. Esta é, na sua expressão mais breve, a incerteza do amor. E da razão.

A separação deles significa desastre. Mas as negociações, se ocorrerem, raras vezes geram um modus vivendi tolerável. A razão e o amor falam línguas diferentes e que não são traduzidas com facilidade; os intercâmbios verbais produzem mais incompreensão e suspeita mútuas do que compreensão e simpatia verdadeira. A razão e o amor não conversam – quase sempre gritam um com o outro.

A razão e melhor conversadora do que o amor, o que faz com que o amor ache muito difícil, quase impossível, redimir-se no discurso. Os duelos verbais terminam sempre com a razão triunfante e o amor ferido: a discussão não é o forte do amor. Chamado para defender um tema que a razão reconhecesse como válido, o amor emitiria sons que a razão acharia incoerentes; na melhor das hipóteses, escolheria ficar calado. Jonathan Rutherford escreveu um breve sumário do longo registro de escaramuças perdidas pelo amor: “ O amor oscila na beira do desconhecido, além do qual fica quase impossível falar. Ele nos leva para além das palavras.” Quando pressionados a falar do amor, “procuramos atrapalhadamente pelas palavras”, mas “as palavras curvam-se, dobram-se e desaparecem”. “Embora possa ter tudo e dizer, não digo nada ou digo muito pouco (Jonathan Rutherford, I Am No Longer Myself You: Na Anatomy of Love (Londres: Flamingo, 1999, p.4).” Todos sabemos o que o amor – até tentarmos dizê-lo alto e bom som. O amor não se reconhece nas palavras, que parecem ser propriedade da razão, sendo um território estrangeiro e hostil ao amor.

Como um réu no tribunal da razão, o amor está destinado a perder o caso, que na verdade já estava perdido antes de o julgamento começar. Como o herói do O processo de Kafka, o amor é culpado de ser acuado; e mesmo que possamos nos inocentar dos crimes que somos acusados de cometer, não existe defesa contra a acusação de ser acusado. Esse tipo de culpa não deriva dos “fatos da questão” , depende de quem está a cargo dos tribunais, de quem tem o direito de julgar e quem deve se submeter aos veredictos. Quando a razão se senta para julgar, escreve as regras do procedimento judicial e nomeia os juízes, o amor é culpado antes mesmo doe o promotor se levantar para expor sua argumentação.

E mesmo assim, como observou Blaise Pascal, “Le coeur a sés raisons”. A ênfase desta frase, como observou Max Scheler, cai sobre duas palavras: “sés” e “raisons”. O coração tem suas razões. ´Suas´, das quais a compreensão não sabe nada nem nunca pode saber; e existem razões – isto é, visões objetivas e evidentes sobre questões para as quais qualquer compreensão é cega – tão ´cegas´ quanto um cego é para as cores ou um surdo para o som (Max Scheler, “Ordo Amoris”, in Selected Philosophical Essay, trad. David R. Lachterman (Evanston: Northwestern University Press, 1973, p. 117).” Vejo alguém como “cego” se ele não vê o que eu vejo tão claramente. E a acusação de cegueira funciona nas duas direções. O coração, insiste Scheler, não tem nada de que se envergonhar ou de que se desculpar. Ele pode igualar facilmente os padrões dos quais a razão tanto se orgulha. Porém, a razão não os reconheceria pelo que são, existe uma ordre du coeur, uma logique du coeur, até mesmo uma mathématique du coeur – cada pedaço delas é tão coerente e elegante quanto aqueles que a razão enumera com orgulho como causa de sua superioridade. A questão é, no entanto, que as ordens lógicas e matemáticas do coração e da compreensão, ou do amor e da razão, não se dirigem aos mesmos aspectos da experiência e não buscam os mesmos objetivos. É por isso que a razão e o amor não se escutam, e se o fizessem, dificilmente entenderiam o significado das palavras que o outro emite. O discurso articulado de um soa como uma tagarelice incoerente para o outro.
(*BAUMAN, Zygmunt. A sociedade Individualizada – vidas contadas e histórias vividas. RJ, Zahar Ed.,2008, PP.205/207 - Sociólogo polonês, é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia. Tem mais de 15 livros publicados no Brasil),

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