sábado, 13 de dezembro de 2008

O que move o mercado

Antônio DELFIM NETTO

Quando os homens se reúnem para cumprir qualquer objetivo, nasce espontaneamente uma certa divisão de tarefas que leva à especialização e aumenta a produtividade de cada um. Já em A República, Platão (no terceiro século a.C.) mostra a necessidade da divisão do trabalho e da especialização para produzir os bens e serviços que levarão ao bem-estar da sociedade. E sugere que isso deve ser facilitado com o uso dos mercados e de uma moeda que torne possíveis as trocas. Depois dele, todos os curiosos que cuidaram dos problemas econômicos (no Ocidente e no Oriente) chamaram a atenção para os mesmos fatores.
Foi com Adam Smith (em 1776) que a divisão do trabalho se transformou, definitivamente, na explicação do próprio processo de desenvolvimento econômico. A partir daí, nunca mais os economistas deixaram de lado as condições que o propiciam: os estímulos à incorporação do conhecimento científico e tecnológico no sistema produtivo, a construção de uma unidade monetária com valor estável e o uso cada vez maior dos mercados.
A pesquisa dos fatores que produzem o desenvolvimento econômico abriu várias avenidas para a nação dos economistas. Acabaram na diáspora que hoje os separa em várias tribos. O lamentável é que a mais influente delas (que ocupa os nossos livros didáticos e condiciona a formação dos nossos economistas) tenha esquecido a velha lição do historiador e general Xenofonte (contemporâneo de Platão), que ligava a divisão do trabalho (e o aumento da especialização que ela produz) ao crescimento das aglomerações urbanas e sugeria que estas alteram a natureza da demanda dos bens e serviços. Talvez tenha sido a primeira intuição da verdade afirmada por Smith, de que a “divisão do trabalho é limitada pelo tamanho do mercado”, da qual muitos economistas se recusam a tirar as conseqüências. Ignoram a forte ligação entre a divisão do trabalho e a especialização produzidas pela urbanização e, principalmente, pela industrialização e o aumento da produtividade do trabalho, ou seja, o próprio desenvolvimento econômico.
Como é evidente, a visão da evolução social aqui exposta recusa as grandes filosofias da História, com suas elegantes e inevitáveis leis do desenvolvimento. A ordem social é o resultado não intencional da cooperação entre indivíduos com a mesma necessidade e com conhecimentos e habilidades limitados, que procuram seus próprios interesses em um sistema de trocas entre si. Um fato muito interessante é que os economistas nunca exploraram o que está por trás dessa possibilidade de organização social e econômica. Ou seja, a necessária confiança de cada um no comportamento de todos os outros. Nas aulas de Sociologia do grande professor Herando Barbuy, na FEA/USP, nas memoráveis manhãs dos sábados de 1948, aprendi que foram Durkheim (1857-1917) e Georg Simmel (1858-1918), dois sociólogos com algum envolvimento em problemas econômicos, que pensaram o assunto. Para o primeiro, a confiança seria uma espécie de elemento pré-contratual da vida social ou a base da solidariedade que a constrói. O segundo (autor de um célebre trabalho de 1900 sobre a moeda, mas só traduzido para o inglês em 1978) tratou a confiança como uma categoria analítica. Para ele, a estabilidade monetária era fundamental para a escolha racional dos indivíduos no mercado – compatível com a liberdade individual – e produto não intencional da confiança criada no próprio processo de desenvolvimento social. A instituição moeda transcende, portanto, as estreitas funções que lhe atribuíam os economistas: unidade de conta, meio de troca e reserva de valor. A confiança e a moeda dela decorrente eram a base sobre a qual se assentava todo o funcionamento da economia de mercado.
A dificuldade de se entender a crise que estamos vivendo decorre de ignorarmos o papel fundamental da morte da confiança, que liga o principal (o que confia) ao agente (em quem ele confiava). Ela foi destruída pela política monetária laxista dos bancos centrais, que surfaram no aumento da liquidez enquanto fingiam acreditar que os economistas-financeiros haviam descoberto equações diferenciais estocásticas capazes de precificar corretamente os riscos.
Hoje, todos já deveriam saber que a confiança é parte importante do capital social. É ela que acelera o desenvolvimento, diminui os custos de transação e os custos de substitutos (como o monitoramento regulatório legal), que reduzem a eficiência dos mercados. Infelizmente, não é isso o que revela a pobreza do verbete Trust in experiments da nova e formidável edição de The New Palgrave Dictionary of Economics (2008).

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