Leandro Konder
A POESIA CORRESPONDE a uma profunda necessidade humana. Sempre podem ser encontradas pessoas que, em nome do bom senso e do saudável espírito pragmático, declaram que não têm interesse algum pela poesia. Devemos respeitar-lhes o mau gosto, a falta de sensibilidade. Com paciência, entretanto, talvez seja possível dar-lhes uma leve idéia do que estão perdendo.
Em seus primeiros desenvolvimentos, a linguagem dos caçadores da idade da pedra refletia a necessidade de movimentos coletivos. Nossos remotíssimos antepassados dependiam de ações sincronizadas para enfrentar animais grandes ou velozes. Podemos supor, então, que a linguagem deles era orientada pela busca de uma objetividade cada vez maior.
Sabemos, porém, que a dimensão subjetiva do medo e o esforço de superação das limitações individuais estava lá desde o início. As "almas" das pessoas não tinham como subestimar as criações coletivas, os valores do "grupo", venerado como um ser superior, transcendente, uma força pertencente à esfera do divino. Quando se defrontavam com essa transcendência, os caçadores, os pescadores davam passos importantes na direção de mudanças na linguagem.
A linguagem pragmática do mundo do "trabalho" cedia espaço à linguagem simbólica da religião. As artes e a literatura não só registraram essa modificação como participaram ativamente dela. Na Grécia antiga, a religião (a mitologia) foi posta no palco. O teatro em Atenas falava a linguagem da poesia. Os gregos viveram mais intensamente do que os seus contemporâneos a descoberta de que não existe – nem pode existir – uma linguagem única, capaz de abranger toda a inesgotabilidade da nossa condição humana. Uma linguagem comprometida com a objetividade, com a exatidão científica, é imprescindível a nosso conhecimento do mundo e de nós mesmos. Uma coisa, porém, é a secura de um informe, o levantamento de dados de um acidente ou de um assassinato. Outra coisa é o uso de recursos artísticos, literários, para aproximar o interlocutor do que foi vivido e arrebatadoramente sentido pelo outro.
Esse é o desafio enfrentado pela poesia. Os poetas escrevem textos que não poderiam ser escritos de outra forma. Há 2500 anos, em Antígona, Sófocles escreveu um poema irretocável. Peço licença para traduzí-lo. (Tenho em algum lugar de casa uma tradução feita por Millôr Fernandes, mas não consegui encontrá-la):
"Há muitas coisas maravilhosas no mundo, mas nenhuma é maior do que o ser humano. Ele sabe atravessar o mar cinzento, aproveitando o vento sul e passando pelos abismos de ondas gigantescas. Rasga e atormenta a mais venerada das deusas, a Terra. Eterna e incansável, ela suporta seus arados e ele, além da colheita, com suas redes, captura os peixes. O ser humano é um inventor engenhoso; domesticou o animal selvagem; o cavalo de longa crina e os touros da montanha. Com a palavra, seu pensamento é veloz como o vento. A se proteger do temporal e do granizo, que castigam rudemente os que não têm outro teto que não o céu. Bem armado contra tudo, menos contra a morte. Nunca terá o poder mágico de escapar dela. Se bem que ele já conseguiu descobrir remédios contra algumas doenças, as mais pertinazes.
Esse poema, para mim, não é só um manifesto humanista, daqueles que são suspeitos de pecar por otimismo, mas acabam nos despertando simpatia. Vejo na tragédia de Antígona, filha de Édipo, contada por Sófocles, a serena confiança do poeta no futuro da poesia.
Desconfio que a poesia teve, na história da humanidade, dois momentos de glória incontestável. O primeiro – que o historiador inglês Gordon Chillde chamou de "revolução neolítica" – na passagem da pré-história à história, a invenção da agricultura, o fim do nomadismo, o início do trabalho com metais, as mudanças na linguagem.
O segundo momento é, digamos, recente: é a revolução industrial, a consolidação do domínio burguês. A organização da vida social em torno do mercado gerou um clima de hipercompetição. Uma onda de violência começou a varrer a Europa e o mundo. Poesia rebelde (e rebeldia poética) participarão decisivamente da batalha final. Os que não gostam de poesia ficarão com a leitura dos discursos dos que não riem e estão sempre ocupados em convocar suas "tropas" para prosaicamente atacar a esquerda. Tem gente que gosta.
*Leandro Konder, filósofo
http://ee.jb.com.br/reader/zomm.asp?pg=jornaldobrasil_117622/102563 20/12/2008
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