terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Albert Camus e o ciúme da vida

Voltaire Schilling *


“...compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de vida...
sou invejoso porque amo demais a vida
 para não ser egoísta.”
Albert Camus – A Morte Feliz

Nem fazia três anos que ele recebera o Prêmio Nobel de Literatura quando o acaso o ceifou aos 46 anos de idade, no dia 4 de janeiro de 1960. Albert Camus tinha horror à chuva e a andar de automóvel, pois morreu num acidente de carro num dia chuvoso. Aceitara uma carona para Paris do seu editor Michel Gallimard e, junto aos seus papéis, encontraram os manuscritos do que ele imaginava ser a sua terceira fase literária: Le Premier Homme, O Primeiro Homem.

Camus, antes de tudo, foi um assombro. Nascera em meio proletário, em Mondovi, na Argélia, em novembro de 1913, periferia da periferia do império francês. Era um pé-negro, um “branco de segunda classe”, segundo os critérios da época. Desde cedo atacado pela tuberculose, fez da pressa o motor da sua produção, visto que nunca imaginou conseguir sobreviver.

Antes dos 30 anos de idade, já tinha escrito suas obras fundamentais: uma novela (O Estrangeiro), um ensaio (O Mito de Sísifo) e uma peça teatral (Calígula). Viu o mundo como que governado pelo absurdo, um sem sentido que somente poderia ser suportado pelo sentimento de revolta.

Durante a ocupação da França (1940-1944), corajoso, assumiu a redação do jornal Combat para insuflar a luta antinazista. Todavia, não acreditava que a guerra fosse desembocar numa revolução radical como era desejo dos comunistas franceses. Afastou-se aos poucos também da esquerda independente comandada por Jean-Paul Sartre, a quem criticava por ser condescendente com os crimes de Stalin, tornando-se um acérrimo inimigo do totalitarismo fosse qual fosse sua tonalidade. Dessa época, seu feito maior foi a novela A Peste, de 1947, monumento alegórico da Resistência contra o invasor.

Ao receber a magna lauda em Estocolmo, em 1957, lembrou que quando as luzes do mundo se refletiam sobre ele e sua obra, inúmeros outros escritores, especialmente no Leste Europeu, viviam condenados à sombra do Estado-total, opressor das liberdades.

Uns anos antes, em 9 de agosto de 1949, Camus, viajante tenaz, desembarcou em Porto Alegre. Era um dia tenebroso do nosso inverno quando Erico Verissimo o recebeu para uma rápida passagem e uma palestra intitulada “A Europa e o crime”, que ministrou no Instituto de Belas Artes. A tísica voltara a cobrar-lhe esforço. Recuperou-se o suficiente para morrer naquele acidente estúpido que o levou quando Paris já se fazia tão próxima. Deixou-nos com ciúme da vida, com inveja dos que viriam depois dele.

* Historiador
FONTE: ZH online, 05/01/2010

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