domingo, 10 de janeiro de 2010

"A Estrada": como os bons sobrevivem ao apocalipse


A natureza exata da catástrofe que devastou a terra e levou o sol embora não é especificada no poderoso filme de John Hillcoat sobre o livro de Cormac McCarthy "A Estrada". Pode ter sido tanto uma explosão nuclear – como sugerido pelo livro, "uma grande lâmina de luz e então uma série de pequenos abalos" – ou um apocalipse ecológico.
Os efeitos são provavelmente quase os mesmos: fizeram com que muitos dos humanos sobreviventes regressassem ao estado de selvageria canibalística. A ameaça sempre presente de grupos de caipiras de olhar malicioso e comedores de humanos (eles se parecem aos desdentados Appalachianos do filme "Amargo Pesadelo" [Deliverance]) dá ao filme um pouco do suspense do gênero de horror.
A análise é de Andrew M. Brown, publicada no jornal The Catholic Herald, 08-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O desastre criou um mundo sombrio, sem energia ou luz do sol, e qualquer vida vegetal ou animal vive mal-e-mal longe dos poucos humanos miseráveis. O diretor de fotografia, Javier Aguirresarobe, retirou do filme grande parte de sua cor. O efeito é quase monocromático, e o único "calor" vem dos flashes laranja das fogueiras.

O próprio Hillcoat se sente muito confortável com amplas paisagens. Ele filmou o seu filme de faroeste australiano "A proposta" [The Proposition], nas planícies do Outback [deserto australiano]. Aqui, ele usa partes da Pennsylvania devastadas pela indústria de mineração de carvão para expressar as vistas "enegrecidas pelo fogo" que McCarthy descreve em seu livro.

Dentre os refugiados, o filme se concentra sobre dois em particular. Eles estão indo rumo ao sul, ao longo das rodovias, até a costa, cerca de 10 anos depois do cataclismo, rodando seus pertences em um carrinho de supermercado: o Homem, interpretado com uma dignidade não forçada de Viggo Mortensen, e o Menino, seu filho, interpretado pelo ator australiano Kodi Smit-McPhee, que parece natural e sem bochechas rosadas ou sardentas. Esses dois e as fortes imagens de devastação fazem o filme funcionar.


Hillcoat se mantém fiel ao livro e à sua narrativa convincente, mas encarna isso de uma forma especial ao adicionar flashbacks e devaneios em cores mais quentes. Nesses momentos, o Homem relembra seus tempos afáveis com a sua esposa (Charlize Theron), quando ela estava grávida de seu filho.

Então, vemos o horrendo momento após o cataclismo, quando eles são encerrados dentro da sua casa suburbana enquanto, do lado de fora, o fogo enfurece, e a esposa – na crença certa de que os canibais errantes irão violentar, matar e comer sua família – resolve morrer em vez de ficar com seu esposo e filho.

Agora, dez anos depois (o menino tem cerca de 10 anos), alguma coisa leva o Homem a não desistir, a permanecer vivo, a proteger seu filho, a seguir em frente. Essa força, que é realmente a força do amor humano, é caracterizado como "o fogo". Enquanto isso, o Homem continua reconfortando o menino: "Estamos carregando o fogo".

O seu vínculo é ainda mais intenso por ter sido forjado ao longo dos anos de sobrevivência entregues a si mesmos contra as forças hostis do homem e da natureza.

"Nós somos os homens bons", eles dizem um ao outro. É o seu lema essencial, lhes dá a coragem e lhes distingue dos "homens maus" – principalmente as gangues de homens e mulheres que matam e comem quaisquer retardatários que encontram pela frente. Esses inimigos humanos parecem mais assustadores e ganham mais vida no filme do que os desafios naturais, a fome constante, o frio congelante, os terremotos.

Por exemplo, em uma cena horrível, o Homem e o Menino estão tão desesperados por comida que arriscam explorar uma mansão colonial aparentemente deserta localizada no topo de uma colina. Eles abrem o porão trancado e acham corpos nus e contorcidos de prisioneiros terrificados, seus braços esticados em sua direção, implorando para serem resgatados. Eles são o estoque de comida vida de uma gangue de canibais.

O Homem deve deixá-los para trás, trancá-los novamente e fugir: essas são as escolhas cruéis que ele precisa fazer de modo a proteger seu filho. Isso se torna uma fonte de conflito entre eles: o Menino não consegue entender a aparente crueldade do seu pai. E mais crueldade está prestes a vir.

Eu não detectei nada de humor no filme, mas houve alguns momentos de alívio feliz e caloroso da privação enclausurante. Em uma parte, a dupla se encontrou com um abrigo subterrâneo abandonado cujos proprietários encheram-no generosamente com produtos enlatados e equipamentos para sobrevivência. Agora, eles podem se lavar, limpar a sujeira acumulada em seus cabelos, escovar seus dentes e beber com vontade sucos de pera Del Monte direto das garrafas, o que parece ser delicioso.

Eles também se encontram com um velho chamado Eli (Robert Duvall) se arrastando pela estrada. Duvall, aos 77 anos, está magistral. Cataratas podem até fechar seus olhos, mas ele é uma espécie de vidente. Ele me lembrou um dos mendigos de "Esperando Godot" [peça de teatro de Samuel Beckett]. "Se há um Deus lá em cima", diz ele, "ele agora deve ter voltado suas costas para nós".


O menino parece um anjo. "A Estrada" oferece esperança na forma do amor intenso e inquebrantável do pai pelo seu filho e na noção de que as pessoas boas e a ideia de bondade representada pelo "fogo" podem sobreviver a um apocalipse, mesmo enquanto Deus parece ter voltado suas costas para a iniquidade do homem. Ainda assim, é uma visão horripilante e emocionalmente esgotadora daquilo que espera pelo nosso planeta.

Talvez, seja uma ingenuidade minha, mas eu pensei nisto enquanto eu assistia o filme: se um futuro como esse tem mesmo uma vaga possibilidade de ocorrer, não deveríamos observar o princípio preventivo e fazer tudo o que podemos para cuidar do mundo?
Fonte: IHU online, 10/01/2009

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