RIO - Há quem procure nas atividades epistolares dos autores algumas das peças ausentes no quebra-cabeça de suas vidas e obras. Longe de oferecer respostas, no entanto, as cinco décadas de correspondências íntimas do francês Louis Ferdinand Destouches, o Céline (1894-1961), que acabam de ganhar, pela primeira vez em seu país, uma edição completa e integral (incluindo diversas cartas inéditas), trazem apenas mais bifurcações na trajetória sinuosa do escritor. Artista renovador da linguagem, homem controverso, condenado à morte (e posteriormente anistiado) por sua associação ao nazismo, Céline foi admirado e odiado. Alcançou a consagração já em seu livro de estreia (Viagem ao fim da noite, de 1932), mas logo caiu de seu pedestal. Seus panfletos antissemitas, escritos a partir de 1937, o amaldiçoaram pelo resto da vida.
Além de Céline, Lettres (Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade), reunião integral e cronológica de toda a correspondência, dois outros livros dedicados ao assunto ganharam as livrarias francesas no final de 2009: Devenir Céline (Gallimard), com cartas inéditas escritas na juventude; e a republicação de Lettres à Joseph Garcin (1929-1938) (Ecriture), panorama de seus diálogos com o jornalista e literato. Se o gênio do escritor sempre produziu um duplo magnetismo, feito de admiração e rejeição, a leitura das coletâneas (ainda sem previsão de lançamento no Brasil) só reforça a antinomia celiniana, provocando o mesmo misto de encanto e desgosto de seu percurso.
– Mais importante ainda do que publicar algumas destas cartas inéditas é fazer, pela primeira vez, o seu ajuste cronológico – explica Henri Godard, organizador de Lettres e um dos principais especialistas em Céline. – Não havia ainda um panorama completo da trajetória do escritor, que espelhasse os aspectos positivos e os negativos. No mesmo plano, temos um escritor importante da primeira metade do século e um violento antissemita. Os dois fazem parte de um único percurso, e isso fica.
Cobrindo entre 1907 a 1961, começa com o jovem soldado Céline pronto para partir para a guerra, passa pelo colaboracionista condenado depois da liberação, o fugitivo caçado, como no romance, de “castelo em castelo”, e chega ao triste velho boicotado pela sociedade, esquecido em sua casa em Meudon, e cuja última carta é enviada ao seu editor Gaston Gallimard um dia antes de sucumbir a uma congestão cerebral. Seus correspondentes são muitos, de familiares a confidentes, de jornalistas a advogados e editores. As cartas aos críticos são particularmente importantes, já que é o único espaço em que podemos ler Céline falando sobre seu processo de escrita.
Independentemente de seus correspondentes, é um homem multifacetado que surge ao longo das mais de 2 mil páginas de Lettres, do médico voluntarista e escritor antibelicista ao súbito monstro racista, do humanista ao colaborador nazista. Devido às suas contradições, algum piadista disse uma vez que Céline teve 27 vidas – não por acaso, adotou diversas mudanças de assinatura em sua correspondência: “Louis Destouches”, “Dr. Destouches”, “Destouches-Céline”, “Teu parceiro Fed”, “L d T” ou simplesmente “Dest”.
Se algumas cartas já eram conhecidas do público, outras inéditas de sua juventude revelam um Céline muito diferente do antimilitarista resmungão de Viagem ao fim da noite. Na correspondência trocada entre os generais e sua família, desenha-se um cadete orgulhoso, recém-inscrito na cavalaria e pronto para partir para a guerra que lhe traria, anos depois, sequelas permanentes, como enxaquecas, terrores noturnos e distúrbios de audição. Apesar de seu empenho, o aprendiz de Bardamu não consegue montar a cavalo, e parece frágil e ligeiramente neurastênico aos olhos de seus superiores.
“O senhor percebe que ele não está abandonado, mas é preciso que ele não abandone a si mesmo, e há coisas fáceis, certos cuidados, que ele poderia fazer melhor”, escreve o Capitão Schneider ao pai do futuro escritor. “Ele é inteligente, educado, instruído, é preciso que ele se faça um sargento e um oficial subalterno em seguida. Sei muito bem das suas mudanças físicas e morais, mas ele precisa perseverar”.
Outra revelação: ao contrário das “lembranças” narradas em Morte a crédito, seu segundo romance, Céline não foi o jovem sofrido, malcriado e inepto descrito pelo próprio autor.
– Achava-se que Morte a crédito era um livro autobiográfico, mas a verdade é que há um extraordinário contraste entre o personagem de Ferdinand e suas cartas de juventude, nas quais ele aparece respeitoso com sua família, que aliás tinha um nível social mais alto do que no livro, pertenciam à pequena burguesia – esclarece Godard.
Agora, com o reposicionamento cronológico de suas cartas, pode-se perceber claramente duas rupturas, uma de ordem espiritual e outra estilística. Esta última começa se manifestar nos anos 30, quando seu estilo ganha pouco a pouco o tom provocativo dos narradores de seus romances, e deixa transparecer todos os seus dons e vocações: ritmo, comédia, propaganda, palhaçada, tática, moral, autopromoção e mesquinhez.
Já a partir de 1916, em sua passagem pela África, desenvolve uma nova visão de mundo ao testemunhar a solidão e o horror das colônias. É como um “segundo nascimento”. Criticando a “embriaguez” e “devassidão” colonialista, Céline parece até um personagem saído das páginas de No coração das trevas, a perturbadora novela de Joseph Conrad que deu origem a Apocalypse now, de Coppola.
Como em seus livros, a morte vira um tema recorrente (“A verdade deste mundo é a morte”, já dizia o Bardamu de Viagem ao fim da noite). Definindo-se um “especialista do cadáver”, cita-o obsessivamente, como quando escreve a Léon Daudet dizendo se regozijar “apenas no grotesco e nos confins da morte”.
– Até então, era um conformista – lembra Godard. – Mas depois de seu ferimento e sua experiência africana, tudo muda. Progressivamente, ele vai percebendo o horror da humanidade e as experiências insuportáveis destas vidas que, como a sua, estavam sendo arruinadas. É deste período, aliás, que datam seus primeiros ensaios literários.
Se a viúva do escritor, Lucette Destouches (que, aos 96 anos, não deseja reavivar polêmicas), continua proibindo a impressão dos panfletos antissemitas, as cartas com o mesmo teor não foram esquecidas por Godard. É obviamente impossível de compreender as origens do ódio de Céline, mas a correspondência deixa algumas pistas.
É certo que depois do fracasso de Morte a crédito, massacrado de forma unânime (para o ensaísta e historiador Élie Faure, escritor “se arrastava na merda”), Céline passou a chamar todos os seus críticos de “judeus”. Sentindo-se perseguido, decidiu transformar-se em perseguidor. A ascensão do socialista Leon Bloom também foi motivo de cartas iradas. De passagem pela União Soviética em 1936, o escritor escreveu de lá acusando os judeus de tudo que não ia bem no país.
– Existe ainda um último fator, que é a iminência da Segunda Guerra – aponta Godard. – Ele acreditava que havia uma ideia na França, formada principalmente pelos judeus, de que o país precisava ir para a guerra. E ele queria evitar a guerra, este era sempre o seu objetivo.
Maldito e antissemita, mas de volta aos holofotes Poucas estreias literárias foram tão aclamadas quanto a do médico Louis Ferdinand Destouches. Aos 38 anos, ele colhia os elogios por Viagem ao fim da noite, vasta e amarga crítica da guerra e da decadência moral e econômica da Europa. Para André Gide, tratava-se de “um dos gritos mais insustentáveis que o homem já lançou”; já para Lev Tolstoi, de um “panorama do absurdo da vida”. Mas coube ao escritor George Bernanos fazer a profética observação: Céline, como assinava a nova promessa, havia “nascido para escandalizar”. O resto de sua trajetória confirmaria as palavras de Bernanos: perseguido pela resistência, desmoralizado mundialmente por suas ideias, o autor morreu sozinho, esmagado pelo que chamava de “boicote total” (“Sou o anticristo”, chegou a dizer). Seu nome se tornou objeto de tabu, mais ou menos como tudo que diz respeito ao colaboracionismo francês.
Hoje, quase 50 anos depois de seu enterro (acompanhado por menos de 30 pessoas), a imagem de Louis Destouches não melhorou. Mas se os crimes permanecem sem desculpas, a obra inovadora do escritor, por outro lado, começa finalmente a ser separada dos atos do cidadão. Aliás, vale lembrar que o antissemitismo violento só aparece em seus panfletos, nunca em seus romances.
– Por conta de todos os seus problemas, Céline permaneceu maldito por muito tempo, as pessoas não se sentiam bem falando nele – confirma Henri Godard. – Mas, no mundo desnorteado de hoje, seus acertos literários passaram a ganhar mais importância do que seus atos. Por isso, a obra está voltando aos holofotes. Vamos combinar: ele era mesmo uma “coisa ruim”. É terrível tudo que ele fez, as coisas insuportáveis que falou dos judeus. Mas sua obra é das mais importantes.
No fim da vida, o idoso de dicção nervosa (como se pode ver em antigas entrevistas disponíveis no YouTube) sonhava, isolado em Meudon, na periferia de Paris, em ter sua obra editada pela prestigiosa Bibliothèque de la Pléiade da Gallimard, que reúne edições de referência das principais obras do patrimônio literário francês.
“Vocês sabem, todo velhinho tem suas manias e a minha é a de ser publicado na Pléiade, e editado na coleção de bolso”, implorava o escritor à editora, que não apenas publicou suas obras pela Pléiade, como acaba de lançar sua correspondência completa pela mesma coleção. Infelizmente, o escritor não viveu o suficiente para ver seu desejo realizado. O primeiro volume saiu poucos meses depois de sua morte.
– Ele vivia dizendo: “Se vocês continuarem se atrasando desse jeito, estarei morto antes de estar na Pléiade” – recorda Godard. – Hoje, todos os seus romances e cartas estão na coleção, com muito sucesso. Ele é o terceiro escritor mais vendido, atrás apenas de Marcel Proust e Albert Camus.
REPORTAGEM por Bolívar Torres, Jornal do Brasil
FONTE: Jornal do Brasil online, 05/01/2010
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