domingo, 3 de janeiro de 2010

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O BIÓGRAFO OLIVIER TODD FALA DOS 50 ANOS
DA MORTE DE ALBERT CAMUS,
DAS DIVERGÊNCIAS COM SARTRE E
DA TENTATIVA DO PRESIDENTE SARKOZY
DE ENDEUSÁ-LO

"Não tenho a impressão de que Camus tenha sido simples:
era dilacerado internamente"

Ao rememorar o pensamento e o trabalho de Albert Camus, morto há 50 anos, Olivier Todd destaca: "Foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um artesão, muito mais que um filósofo da linhagem de Platão, Kant, Sartre ou Wittgenstein".

Camus é o autor de uma das obras mais significativas do século 20, que inclui romances como "O Estrangeiro", "A Peste" e "A Queda". Recebeu, em 1957, o Nobel de Literatura.

Biógrafo do célebre escritor francês -sobre quem escreveu o livro "Albert Camus - Uma Vida" (ed. Record)-, Todd avalia, em entrevista ao jornal "Le Monde", que ele também foi um "bom analista" do momento histórico em que viveu. Camus atuou na resistência ao nazismo durante a Segunda Guerra, quando conheceu o escritor e filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-80), de quem ficou amigo.

Em 1951, lançou o livro de ensaios "O Homem Revoltado" [ed. Record], em que criticava a opressão das ditaduras comunistas. A reação de Sartre ao livro motivou o rompimento da amizade entre os dois. "Camus se defendeu bem, mas a ruptura estava consumada", diz Todd na entrevista abaixo.

PERGUNTA - Camus se tornou uma espécie de ícone. Como o sr., biógrafo dele, explica isso?
OLIVIER TODD - As pessoas o mitificam no papel de alma bela. Coisa que ele foi, para sua própria honra. Para mim, Camus foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um artesão, muito mais que um filósofo da linhagem de Platão, Kant, Sartre ou Wittgenstein. Em dado momento, ele tentou exprimir uma filosofia à francesa, extremamente literária. Voltou atrás. Muito cedo, disse "não sou existencialista" e, muito tarde, admitiu que não era filósofo. Tanto melhor.

Ele não deixaria rastro nenhum na filosofia, concebida como um saber totalizante. Sua concepção do absurdo não resiste às contestações. Para ele, é quase uma substância entre o homem angustiado e o mundo irracional; o mundo não é nem absurdo nem negro nem cor-de-rosa: ele é. O absurdo não é, antes de mais nada, a contingência? Camus foi um pensador político que agiu com base em intuições, fundamentado em sua própria experiência.

Nascido na Argélia [em 1913] e morador de Argel, ele vinha de uma família de "pieds-noirs" [franceses nascidos na Argélia]. Sabia o que eram o proletariado e a pobreza. Camus não foi um visionário diante dos acontecimentos mundiais, mas se revelou bom analista do momento.

PERGUNTA - O que se diz desde então é que Camus sempre teria tido razão e que Sartre teria sempre se enganado.
TODD - Camus morreu em 1960 [em um acidente de carro]. Não sabemos como teria reagido aos acontecimentos -por exemplo, à Guerra do Vietnã- sobre os quais Sartre não demorou a manifestar sua posição.

Como muitos intelectuais franceses, Camus não entendia nada de economia. Foi um homem politicamente honesto, mesmo nos casos em que se enganou -com relação à Argélia- e em que teve razão -com relação ao comunismo. Para compreendê-lo, é preciso conhecer toda sua vida política.

Jovem, excelente jornalista que escreveu no "Alger Républicain", antes da guerra, denunciou a miséria na Cabília [a leste da capital da Argélia]. Foi repórter prodigioso, mais fascinante que o editorialista que se tornaria no "Combat" ou no "L'Express" -esse é um ponto de vista muito pessoal, reconheço.

Ingressou no Partido Comunista argelino em 1934 e se afastou dele porque o partido não defendia suficientemente os nacionalistas argelinos. Seu silêncio com relação a sua adesão ao partido me deixou perplexo. Quando, em 1945, negou ter sido comunista, estava prestes a embarcar para os EUA. Naquela época, os americanos não davam vistos de entrada aos membros do Partido Comunista. Foi um pecadilho menor para um homem que odiava a mentira.

Seu grande deslize foi a famosa e infeliz declaração, pouco lógica, que deu em Estocolmo, na Suécia, depois de receber o Prêmio Nobel, em 1957: "Creio na Justiça, mas eu defenderia minha mãe antes da Justiça". O jornal "Le Monde" a publicou fora de contexto. Beuve-Méry [jornalista, 1902-89] tinha previsto: "Em Estocolmo, Camus só dirá besteiras." Sobre Sartre e Camus, é preciso também voltar ao contexto quanto à discussão da revista "Les Temps Modernes" a respeito de "O Homem Revoltado". Trata-se de um monumento antológico da história literária, não da história política.

Tirando 50 páginas sobre o comunismo e o Marx messiânico, não gosto desse livro, misto de literatura, política, filosofia, Rimbaud, Breton... Uma parte de "O Homem Revoltado" tinha sido publicada na "Temps Modernes". Ingênuo, Camus esperava uma crítica positiva. Ele encontrou Sartre, que o preveniu: haverá reservas. Perplexo e acabrunhado, Camus descobriu uma crítica arrasadora e maldosa do filósofo Francis Jeanson.

Magoado e um tanto quanto arrogante, Camus começou seu artigo em resposta às críticas com "senhor diretor", o que irritou Sartre. Camus se defendeu bem, mas a ruptura estava consumada. Em 1954, em "Os Mandarins" [ed. Nova Fronteira], Simone de Beauvoir faz de Camus um personagem repugnante, até mesmo colaboracionista.

Foi sempre um homem marcado por dúvidas, incerto quanto a seu talento. Já Sartre acreditava na genialidade dele. Politicamente, sou mais próximo de Camus, mesmo sabendo que dizer isso hoje é fácil. Eu gostaria também que fosse lembrado que Sartre, criptocomunista, não se enganou sempre. Por exemplo, com relação a Israel e aos palestinos, com relação a Biafra [atual Nigéria]. É preciso parar de dizer que ele nos enganou. Nós nos enganamos com ele.

Eu tinha 19 anos quando conheci Sartre, em 1948. Ele teve a gentileza de me receber com bastante frequência. Conheci a obra de Camus. Não o homem. Chamou minha atenção o lado direto e simples de Sartre. Não tenho a impressão de que Camus tenha sido simples. Era muito dilacerado internamente. As relações entre os dois foram assimétricas. Camaradagem, cumplicidade, festas, mas não amizade. Tiveram atitudes muito diferentes com relação à ação. Camus pertenceu à Resistência ativa. Sartre, não.

PERGUNTA - Quais são os livros de Camus que o sr. prefere?
TODD - "O Estrangeiro" [ed. Record], "Noces" [Bodas, 1938], por seu lado lírico puro, sem grandiloquência. E, sobretudo, "A Queda" [ed. Record]. Eu fazia perguntas frequentes a Sartre sobre os livros de Camus. Ele preferia "A Queda", "porque, nele, investiu e se escondeu por inteiro".

PERGUNTA - E na obra de Sartre?
TODD - Também ele é, para mim, escritor antes de mais nada, ainda que se visse como filósofo que desvelava o mundo em sua totalidade. Gosto de "A Náusea" [ed. Nova Fronteira] e de seus romances. Sobretudo "A Infância de um Chefe" [conto do livro "O Muro", ed. Nova Fronteira]. Gosto, sobretudo, de "As Palavras" [ed. Nova Fronteira], um diamante negro que faz contraponto a "A Queda". Em "Situações" [ed. Cosac Naify], há coisas extraordinárias sobre o engajamento e um amontoado confuso político-dialético.

PERGUNTA - O que pensa das relações entre Camus e André Malraux?
TODD - Foram muito importantes. Também foram assimétricas. A correspondência entre eles é fascinante. Camus era um jovem desconhecido, e eles se escreviam de igual para igual. Foi graças a Pascal Pia e a Malraux que "O Estrangeiro" foi publicado.

Creio que Malraux nunca tenha comentado a obra de Camus. Quando Camus recebeu o Nobel, ele disse: "É Malraux quem deveria tê-lo ganho". Nas relações de homem a homem de Camus, a sombra do pai que ele nunca conheceu se faz sentir a todo momento. Foi o caso com Jean Grenier, Malraux, Sartre, René Clair -embora com este último tenha havido uma amizade um pouco solene, a julgar pelas cartas trocadas. Como estou falando sobre documentos, é preciso mencionar que ainda há muita coisa inédita. A correspondência com certas mulheres importantes da vida de Camus, entre elas Maria Casarès ou Mi, o último amor de Camus. Essas cartas foram doadas à Biblioteca Nacional da França. Ver Camus como ícone descarnado não é lhe render homenagem. É preciso conservá-lo vivo em sua complexidade e suas contradições.

Nos últimos meses, vem sendo feito um grande esforço para repintar o ícone. Os pretorianos intelectuais do Eliseu [palácio do governo francês] estão lançando uma grande manobra para, imagine só, "panteonizá-lo"! [leia texto ao lado] Camus não é nem exemplar nem edificante. Ele nos leva a refletir. Que as pessoas o leiam, em lugar de repetir generalidades sem compreender seu percurso. Gosto de uma resposta que ele deu em uma de suas últimas entrevistas. Perguntaram-lhe: "Sr. Camus, o sr. ainda faz parte da esquerda?". "Sim, apesar dela e apesar de mim." Atual, não? ______________________________________
A íntegra desta entrevista saiu no "Le Monde".  Por JOSYANE SAVIGNEAU - Tradução de Clara Allain .
FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0301201007.htm

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