sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Viver e morrer no cinema


No ano que terminou, a tecnologia deu um show nas telas,
em filmes que, em sua maioria,
retrataram várias formas de perdas

Foi um ano de grandes sucessos e profundas inovações tecnológicas. Com mais de 6 milhões de espectadores, o nacional Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho, só não cravou a maior bilheteria de 2009 no País porque outro brasileiro, Carlos Saldanha, assinou a animação norte-americana que foi a grande favorita do público - A Era do Gelo 3, com mais de 9 milhões. O número no título não se refere só ao episódio da série A Era do Gelo (Ice Age), mas também à terceira dimensão, grande vedete das telas no ano que se encerrou à meia-noite de ontem. Você pode estar certo de que o 3-D vai continuar dando as cartas em 2010. Hollywood faz o que pode para se assegurar que o formato não repetirá o fiasco dos anos 1950, quando viveu por um breve lustro.

O 3-D representa o futuro - do cinema, da animação? Os estúdios apostam que sim e fazem investimentos maciços na tecnologia, mas não bastam os filmes. Os sistemas de projeção ainda são predominantemente formatados para tecnologias mais tradicionais, leia-se o 35 mm. Mesmo o circuito digital, embora em expansão, ainda é precário. Veja o caso de Avatar. O megaprojeto de James Cameron estreou nas últimas semanas de 2009. No Brasil, ocupou cerca de um terço do mercado, mas das 612 salas, 110 exibiram o filme em 3-D, duas em Imax e exatamente 500 estão tendo suas projeções em 2-D. Vale insistir no filme de Cameron. Avatar é o futuro, e não apenas como proposta de linguagem (ou técnica). Na trama do filme, o recruta Sam Worthington é um paralítico que precisa passar por uma profunda transformação, até habitar, em definitivo, o corpo de seu avatar. A paralisia é o cinema moribundo? A morte não é só fatalidade biológica. É também metáfora da mudança.

Morrer e (re)viver no cinema, tal foi o conceito dominante nos grandes filmes que marcaram 2009. Entre os maiores/melhores filmes do ano que acabou ontem, a maioria se construiu em torno à ideia da morte. Um dos ótimos em que isso não ocorreu, o francês Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet - vencedor da Palma de Ouro de 2008 -, não deixa de tratar de uma espécie de morte também. O filme faz de uma sala de aula o microcosmo da sociedade francesa dividida por tensões internas (e a rejeição do imigrante). Tudo isso é forte, mesmo que, no limite, o grande tema em discussão seja a própria língua. O francês dos grandes autores - de Molière e Racine - está morrendo ou se transformando, como o cinema em Avatar? Um dos garotos é excluído do corpo social. Pode ser, ou é, uma morte simbólica. Pegue agora os maiores filmes brasileiros do ano, a ficção A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele, e o documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski. A morte, em ambos, é experiência real (e visceral).

Litewski usa o assassinato do empresário de origem dinamarquesa pela guerrilha urbana - os guerrilheiros dizem que foi justiçamento - para discutir uma questão importante. É possível salvar a democracia com um golpe? A ditadura militar foi um pacto com setores civis, os mega-empresários que deram dinheiro para patrocinar a tortura e uma ala da imprensa que teria emprestado carros para o transporte de prisioneiros. O ator Nachtergaele, estreando na direção, narra uma radical história de delírio religioso. Existe a festa em homenagem à menina desaparecida e ela movimenta uma comunidade ribeirinha. O oficiante do culto é Santinho (Daniel de Oliveira), andrógino e incestuoso (com o próprio pai). Nachtergaele fez um filme de sensações, que deixa o espectador chapado sem necessidade de estupefacientes.

Michael Mann vai por aí no poderoso Inimigos Públicos, que revisita o cinema de gêneros e usa os gângsteres para falar de morte (e fazer a ponte entre crime e política). Kate Winslet foi a melhor atriz do ano, mas não por O Leitor, que lhe deu o Oscar, e sim, por Foi apenas Um Sonho, que seu marido, Sam Mendes, adaptou do romance de Richard Yates. De novo Kate forma dupla com Leonardo DiCaprio e ambos fazem o casal suburbano que descobre que se aburguesou, traindo o caminho revolucionário (The Revolutionary Road, título original) que haviam traçado para ambos. Outro casal, o formado por Brad Pitt e Cate Blanchett, viveu a epifania do ano em O Curioso Caso de Benjamin Button. O filme de David Fincher mostra como as novas tecnologias e efeitos especiais podem ser incorporados a uma história rigorosamente intimista. O filme é sobre esse bebê que nasce velho e morre, décadas mais tarde, como um nascituro.

Lá pelo meio da vida de ambos, Pitt e Cate, os amantes improváveis de 2009, encontram-se por um momento, na plenitude de sua beleza e juventude, diante do espelho. Não é exagero pensar que o cinema talvez tenha sido inventado para celebrar momentos assim. Veículo de vida, ele eterniza a imagem e, ao mesmo tempo, nesta eternidade "congelada", está a negação da vida. O cinema vira veículo de morte. Clint Eastwood usa um velho modelo de carro, o Gran Torino, como título de seu grande filme que bem pode ter alguma coisa a ver com Avatar. Não quanto à técnica, claro, mas quando Clint escolhe morrer para salvar o outro, o estrangeiro, ele bem pode estar realizando a metamorfose final do recruta Worthington em James Cameron.

A morte, tantas vezes retratada em 2009, possui os próprios rituais e eles estão no centro de A Partida, o filme do japonês Yojiro Takita que derrotou o favorito Valsa com Bashir e foi o vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro do ano. Um homem desempregado vai trabalhar numa funerária. No exercício da profissão, cuidando dos mortos, ele faz descobertas decisivas sobre os vivos - e sobre si mesmo, chegando, tardiamente, a desvendar o nó górdio de sua vida, na relação com o pai. Quentin Tarantino ressurgiu espetacularmente com Bastardos Inglórios, seu filme de guerra sobre um grupo de "justiceiros" de nazistas. Com seus elementos emprestados a Robert Aldrich, Sergio Leone e Enzo G. Castellari, Basterds é sobre o cinema como uma fantástica fábrica de sonhos e o mais delirante de todos é a alegre, mas não cínica, impunidade com que Tarantino reescreve a história, retirando Hitler do seu bunker e fazendo-o morrer num cineminha de arte e ensaio, em Paris. O derradeiro destaque. Nos últimos anos, não há lista de melhores sem pelo menos uma animação: o gênero - ou será a mídia? - não apenas se sofisticou extraordinariamente como vem sendo cada vez mais transgressivo. Pete Docter, em Up - Altas Aventuras, conta a história de um velho que purga a dor da perda da mulher. Nada, aparentemente, menos indicado para crianças. Elas amaram Up. Seus pais, também. A animação em 3-D é a tendência forte do cinemão. Vida e morte na tela, como fatalidade biológica e/ou metáfora. O cinema tradicional está morrendo ou se transformando? Quem vir viverá.

FONTE: Estadão online, 01/01/2010 - Por Luiz Carlos Merten

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