quarta-feira, 16 de junho de 2010

Êxodo sem retorno

Refugiados



Relatório da ONU afirma que 43,3 milhões de pessoas foram deslocadas por conflitos em 2009, um recorde desde os anos 1990. E cada vez menos gente volta para casa

No último ano, a quantidade de pessoas que tiveram de se deslocar do lugar de origem por conta de conflitos ou perseguições foi o maior registrado nas últimas duas décadas. Entre os 43,3 milhões casos documentados estão refugiados, os que aguardam a concessão oficial desse status e pessoas que se deslocaram dentro do próprio país. Essas últimas também se multiplicaram em ritmo considerável, chegando a 27,1 milhões em todo o mundo — 4% a mais que no ano anterior. No Brasil, a quantidade de refugiados quase triplicou de 2008 para 2009, sendo que 65% vieram de países africanos.

Os números são do relatório Tendências globais, publicado anualmente pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e divulgado em todo o mundo ontem. Segundo o documento, este também foi o ano em que se registrou o menor fluxo de retorno voluntário de refugiados desde 1990. Na última década, uma média de 1 milhão de pessoas voltavam para o país de origem a cada ano. Em 2009 foram apenas 251 mil. “Esse é um número muito baixo se comparamos com os últimos 10 anos, e pode ser explicado pelo fato de muitos conflitos no mundo persistirem, como no Afeganistão e no Iraque”, explicou o representante do Acnur no Brasil, Andres Ramirez.

De fato, esses dois são os países que mais “exportam” refugiados. O relatório mostra que 2,88 milhões de afegãos e 1,78 milhão de iraquianos tiveram de se deslocar por conta da situação em seus países. Somália, República Democrática do Congo, Myanmar e Colômbia aparecem em seguida como locais de onde mais partem refugiados. Segundo o alto comissário da ONU para Refugiados, António Guterres, a maioria dessas pessoas tem vivido no exílio por cinco anos ou mais. “Inevitavelmente, essa proporção crescerá, uma vez que menos refugiados têm condições de retornar para casa”, explicou Guterres.

Destino aleatório

O Acnur apontou ainda que 80% dos 15,2 milhões de refugiados estão hoje em países em desenvolvimento — uma escolha que mostra que há muitas diferenças entre quem foge e quem emigra. “A tendência dos emigrantes econômicos é ir para zonas urbanas, com altos salários, mais desenvolvimento e com maior potencial para emprego. Mas não é essa a lógica do refugiado. O país com maior número de solicitações hoje é a África do Sul, que está em uma situação de menor desenvolvimento que o Brasil, por exemplo, e apresenta uma queda na expectativa de vida nos últimos anos”, destacou Ramirez.

Segundo o relatório, a grande maioria dos refugiados (80%) acaba ficando na vizinhança da área de conflito. O melhor exemplo está no Oriente Médio. A região que concentra as duas principais origens de refugiados — Afeganistão e Iraque — é também a que concentra os países mais procurados como destino: Paquistão, Irã e Síria. “Eles não escolhem países desenvolvidos, simplesmente atravessam a fronteira”, explica o representante do organismo no Brasil.

Isso ocorre também na América Latina, com a Colômbia. A maior parte dos 389,8 mil refugiados do conflito entre o governo e a guerrilha das Farc está vivendo no Equador, na Venezuela, no Panamá e na Costa Rica — países que nem de longe seriam escolhas consideradas por emigrantes econômicos. “Se você visitar a fronteira (da Colômbia) com a Venezuela, vai ver que é uma zona muito pobre, não é Nova York. O mesmo acontece na fronteira com o Equador”, observa Ramirez. “Um crescimento importante foi no Equador, principalmente porque, no último ano, o governo do país implementou o que chamaram de registro ampliado, pelo qual quase 30 mil pessoas foram documentadas como refugiados”, completa o representante do Acnur no Brasil.

No Brasil, maioria de Angola e Colômbia

O Brasil não é nem de longe um dos países que mais recebem refugiados — até na América do Sul, perde para o pequeno Equador —, mas viu o número quase triplicar no último ano. No fim de 2009, eram 4.232 registrados. Até junho deste ano, a soma era de 4.294, vindos de 76 países, e cerca de 90% pediram o refúgio já em solo brasileiro. A África é o continente de origem da maior parte — cerca de 65% —, seguido dos vizinhos americanos, com 22%, da Ásia, com 10,3%, e da Europa, com 2,3%.

Em 2008, 106 solicitações de refúgio foram concedidas pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça. No ano seguinte foram 275, número que ficou abaixo dos 355 registrados em 2007. “Analisando os dados, percebemos que não há uma lógica nos números, porque isso depende sempre do que acontece nos países de origem”, explica o coordenador-geral do Conare, Renato Zerbini. Outro fator que contribui para que o Brasil tenha um número relativamente baixo de refugiados, mesmo estando ao lado da Colômbia — sexto país de onde mais partem refugiados —, é a característica das fronteiras. “O Brasil faz limite com quase todos os nossos vizinhos, mas as fronteiras são de difícil acesso”, destaca Zerbini.

Ele, no entanto, lembra que a extensa costa brasileira, voltada para a África, acaba sendo um atrativo para o continente onde a população tem mais necessidade de se deslocar por conta de conflitos. “Aqui chegam muitos navios africanos. E há também a questão dos conflitos nacionais da última metade do século 20 na África”, afirmou. Para Zerbini, a hospitalidade do povo brasileiro também é um atrativo. “Aqui os refugiados se sentem tranquilos em relação a raça, religião e grupo social.”

Dos 4.294 refugiados no Brasil, 1.688 vieram de Angola, 589 da Colômbia, 420 da República Democrática do Congo e 259 da Libéria. Até mesmo do distante Iraque, onde a guerra iniciada em 2003 fez do país a segunda maior origem de deslocados, 199 vieram para o Brasil. No caso da Colômbia, 254 dos 589 já tinham procurado abrigo em outros países da região, a maior parte no Equador.

Zerbini, contudo, negou que o governo brasileiro tema um aumento do número de colombianos solicitando refúgio na fronteira — em especial guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) — por conta da ofensiva do governo vizinho contra o narcotráfico. “Esse número nunca aumentou e não vai ser agora, que a situação parece estar melhorando, que vai aumentar. O Brasil não teme isso.” (IF)
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Reportagem: Isabel Fleck

Fonte: Correio Braziliense online, 16/06/2010

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