Fábio Tofic Simantob*
Nas últimas décadas, a Justiça Criminal tornou-se alvo de críticas e carecedora de credibilidade. Há um abismo entre a vontade popular e os instrumentos jurídicos sagrados que, no afã de proteger os inocentes, acabam evitando, por vezes, a condenação dos culpados. Quando um caso clamoroso aparece na televisão, é fácil julgar, principalmente porque o discurso acusatório é posto no volume máximo, enquanto os argumentos que lançam dúvidas sobre a culpa são jogados para debaixo do tapete. Absolvido o réu, há uma catarse geral e ninguém consegue entender o desfecho indesejado, restando como consolo apenas acusar o juiz que o absolveu.
Acontece que uma das maiores causas de erros judiciários no Brasil ainda é a investigação policial bastante ineficiente. Se o leitor estiver pensando na investigação de Primeiríssimo Mundo que foi mostrada à população no caso Isabella Nardoni, pergunte a qualquer delegado, promotor, advogado ou juiz se ele conhece algum outro caso, anterior ou posterior ao da menina morta no edifício London, em que tenham sido usadas técnicas tão avançadas de perícia criminal. Se fossem empregados 10% dos meios de prova usados naquele caso, nossa Justiça já estaria ótima. A verdade é que, sobretudo nos casos de homicídio, as provas por excelência continuam sendo a confissão do acusado - obtida, em regra, sem a presença de advogado -, testemunhos de "ouvi dizer" ou, ainda, de pessoas que chegam a Juízo e desmentem o depoimento prestado à polícia.
Mesmo quando se trata de caso rumoroso, é bastante comum - é claro que existem exceções - a investigação se preocupar mais com uma resposta rápida para a sociedade do que com a descoberta real da verdade. Alguns casos são bastante emblemáticos dessa atuação policial, como o do Bar Bodega, no qual a polícia apresentou, em tom triunfal, à população a confissão de todos os acusados, provando-se depois que tudo não passou de uma grande farsa. Se um promotor de Justiça não tivesse ido atrás para descobrir a verdade, ocorreria ali um erro judiciário gravíssimo, embora corriqueiro na Justiça brasileira. Se isso acontece a olhos vistos, é de imaginar o que não se passa em silêncio nas investigações que andam anonimamente pelos rincões do País.
Engana-se, por outro lado, quem pensa que investigação mal feita é privilégio de réus pobres e sem condições de contratar advogado. Sobretudo nos últimos anos, tornaram-se muito comum prisões espetaculares sem nenhum substrato jurídico aceitável, o que acabou levando muitos casos a morrerem na praia. Um caso emblemático foi o da prisão dos donos de uma conhecida cervejaria por crime de sonegação fiscal só com base em grampo telefônico, embora o Supremo Tribunal Federal não aceitasse mais, na época, inquérito por sonegação fiscal, o que dirá prisão, antes de esgotada a discussão tributária na esfera própria. A sensação é que se buscou acender com o clamor público a brasa que os elementos da investigação não conseguiam por si só fazer fumegar.
Quando o caso chega à Justiça, é fácil odiar o juiz responsável pela absolvição de alguém que a televisão ou os jornais apontavam como culpado. Pouca gente para para pensar que a absolvição é fruto de uma investigação fracassada, que não deu ao juiz alternativa senão inocentar o réu.
Sob este prisma fica um pouco mais fácil pensar que tipo de reforma queremos. Um Código de Processo Penal deve ser capaz de proteger o cidadão dos arbítrios estatais, ainda muito comuns na fase de investigação - daí ser louvável a proposta de criar um juiz de garantias só para zelar pelos direitos e garantias do réu na fase da investigação e outro para julgar o caso - e, ao mesmo tempo, apto a levar a bom termo a condenação de quem se provou a culpa. Algumas outras propostas previstas no projeto em trâmite no Senado, como a de dar ao réu a chance de confessar o crime em troca de receber a pena mínima, parecem ir exatamente na contramão do que se quer de uma Justiça melhor: parece preferir a resposta rápida à descoberta da verdade real. Neste ponto, ainda fica a dúvida: quem não confessar perde o direito à pena mínima? É a institucionalização da confissão extorquida.
Em outros pontos, a reforma parece desequilibrar ainda mais a balança da Justiça, colocando mais peso no prato onde estão as formas mais invasivas e preguiçosas de investigação criminal - como o grampo telefônico, que passa a ser permitido em alguns casos num prazo máximo de até um ano ininterrupto - e limitando os meios de questionar abusos, com a restrição do uso do habeas corpus, que passa a ser admitido apenas para casos de prisão. É bom lembrar que a interceptação de conversas telefônicas é excelente instrumento de descoberta de crimes, mas deve ser apenas um meio para ser chegar a outras provas (para descobrir o cadáver, a fraude, o cativeiro), e não ser usada como uma prova em si mesma. Hoje basta falar alguma coisa ao telefone para ser culpado de um crime, às vezes mesmo sem se ter certeza material da existência do delito. O absurdo é tão grande que falar ao telefone se tornou mais incriminador do que confessar um crime na frente do delegado. Explica-se: o artigo 155 do atual Código de Processo Penal proíbe condenar somente com provas colhidas na fase de inquérito, de modo que a confissão a polícia, para ser válida, precisa ser confirmada na frente do juiz; já as conversas objeto de grampo, não. Vamos convir que são tempos estranhos estes que vivemos...
Com ou sem a reforma do código, enquanto os processos continuarem a chegar ao Judiciário absolutamente desprovidos de elementos probatórios válidos e seguros, as investigações mal feitas e ilegais continuarão sendo as maiores aliadas da impunidade.
_________________________________*ADVOGADO CRIMINALISTA, É DIRETOR DO INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA
Fonte: Estadão online, 16/06/2010
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