Rubem Alves*
Sérgio, meu filho, me fez um pedido estranho.
Pediu-me que preparasse um ritual para o batismo da Mariana, minha neta.
Eu lhe disse que, para se fazer tal ritual, é preciso acreditar. Eu não
acredito. Já faz muitos anos que as palavras dos sacerdotes e pastores
se esvaziaram para mim, muito embora eu continue fascinado pela beleza
dos símbolos cristãos, desde que sejam contemplados em silêncio.
Ele não desistiu e argumentou: "Mas você fez o meu
casamento." De fato. Lembro-me de como ele encomendou o ritual: "Pai,
não fale as palavras da religião! Fale só as palavras da poesia!" E
assim foi. Foram textos do Cântico dos Cânticos, poema erótico da
Bíblia, que deixa ruborizadas as faces dos beatos e beatas: "Teus dois
seios são como dois filhos gêmeos de gazela! Teus lábios gotejam doçura,
como um favo de mel, e debaixo da tua língua se encontram néctar e
leite..." Divirto-me pensando na cara que fariam Papa e bispos se lessem
esses textos... Seguiram-se textos do Drummond, do Vinícius, da Adélia -
tudo terminando não com a chatíssima Marcha Nupcial, mas com a
Valsinha, do Chico, ocasião em que os convidados, moços e velhos,
pegaram os seus pares e trataram de dançar. Foi bonito. Quando a coisa é
bonita a gente acredita fácil.
Lembrei-me, então, de um trecho do livro Raízes
negras - onde se descreve o ritual de "dar nome" ao recém-nascido, numa
tribo africana.
Omoro, o pai, moveu-se para o lado de sua esposa,
diante das pessoas da aldeia reunidas. Levantou então a criança e,
enquanto todos olhavam, segredou três vezes nos ouvidos do seu filho o
nome que ele havia escolhido para ele. Era a primeira vez que aquele
nome estava sendo pronunciado como nome daquele nenezinho. Todos sabiam
que cada ser humano deve ser o primeiro a saber quem ele é. Tocaram os
tambores. Omoro segredou o mesmo nome no ouvido de sua esposa, que
sorriu de prazer. A seguir foi a vez da aldeia inteira: "O nome do
primeiro filho de Omoro e Binta Kinte é Kunta!" Ao final do ritual, após
desenvolvidas todas as suas partes, Omoro, sozinho, carregou seu filho
até os limites da aldeia e ali levantou o nenezinho para os céus e disse
suavemente: "Fend kiling dorong leh warrata ke iteh ted": "Eis aí, a
única coisa que é maior que você mesmo!"
Essa memória me convenceu e tratei de inventar um ritual de "dar nome", já que nenhum eu conhecia que me agradasse.
Organizei o espaço do living. Empurrei a mesa
central, baixa, na direção da lareira. À cabeceira coloquei um banquinho
velhíssimo - ali a Mariana se assentaria. Ao lado, duas cadeiras, uma
para o pai, outra para a mãe. Na ponta da mesa, uma grande vela. É a
vela da Mariana, vela que a acompanhará por toda a sua vida, e que
deverá ser acesa em todos os seus aniversários. Ao lado da sua vela,
duas velas longas, coloridas. E, espalhadas pela sala, velas de todos os
tipos e cores. Na ponta da mesa, ao lado da vela da Mariana, um prato
de madeira com um cacho de uvas.
Reunidos todos os convidados, começou o ritual. Foi
isso que eu disse: "Mariana: aqui estamos para contar para você a
estória do seu nome. Tudo começou numa grande escuridão." As luzes se
apagaram enquanto, no escuro, se ouvia o som da flauta de Jean Pierre
Rampal.
"Assim era a barriga da sua mãe, lugar escuro, tranqüilo e silencioso. Ali você viveu por nove meses. Passado esse tempo você se cansou e disse: 'Quero ver luz!' Sua mãe ouviu o seu pedido e fez o que você queria. Ela 'deu à luz'. Você nasceu."
A mãe e o pai da Mariana acenderam então a vela grande, que brilhou sozinha no meio da sala.
"Veja só o que aconteceu! Sua luz encheu a sala de
alegria. Todos os rostos estão sorrindo para você. E, por causa desta
alegria, cada um deles vai, também, acender a sua vela."
Aí o padrinho e a madrinha acenderam as velas
longas coloridas, e os outros todos acenderam, cada um, uma das velas
espalhadas pela sala.
À chegada dos convidados eu havia dado a cada um
deles um cartãozinho, onde deveriam escrever o desejo mais profundo para
a Mariana. Continuei:
"Você trouxe tanta alegria que cada um de nós escreveu, num cartãozinho, um bom desejo para você. Assim, pegue esta cestinha. Vá de um em um recolhendo os bons desejos que eles escreveram. Esses cartõezinhos, você os vai guardar por toda a sua vida..."
E lá foi a Mariana com a cestinha, seus grandes olhos azuis, de um em um, sendo abençoada por todos.
"Todos deram para você uma coisa boa", eu disse
depois de terminado o recolhimento dos cartões. "Agora é a hora de você
dar a todos uma coisa boa. Você é redondinha e doce como uma uva. Esta é
a razão para este cacho de uvas. E é isso que você vai fazer. Seus
padrinhos vão fazer uma cadeirinha e você, assentada na cadeirinha, vai
dar a cada um deles um pedaço de você, uma uva doce e redonda..."
E assim, vagarosamente, a Mariana celebrou, sem saber, esta insólita eucaristia: "Esta uva doce e redonda é o meu corpo..."
Terminada a eucaristia, eu disse à Mariana:
"Agora, chegando ao fim, cada um de nós vai dizer o seu nome. Preste bem atenção. O nome é um só. Mas cada um vai dize-lo com uma música diferente. Porque são muitas e diferentes as formas como você é amada."
E assim, iluminados pela luz das velas, cada um
dos presentes, olhando bem dentro dos olhos da menina, ia dizendo:
"Mariana", "Mariana", "Mariana", "Mariana"...
Aqueles que olhavam os olhos da Mariana puderam ver que, à medida que ela ouvia o seu nome sendo repetido, eles iam se enchendo de lágrimas...
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* Teólogo. Escritor. Cronista. Educador.
Fonte: Luz e Calor (noreply@blogger.com) e http://www.rubemalves.com.br/10mais_04.php
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