Paulo Ghiraldelli Jr.
Estamos dando pouca atenção a isso, mas há no Brasil uma crescente
intolerância ao Estado laico e à existência de uma cultura religiosa
plural
Caso 1. Há lugares (Rio de Janeiro à frente) que mantém aulas de
religião na escola pública, inclusive exigindo que o professor seja
antes um devoto que autenticamente um estudioso do assunto.
Caso 2. Após o início da novela "Salve Jorge", a Rede Globo já teve de
vir oficialmente explicar para grupos evangélicos que a novela não faz a
apologia de nenhum santo católico ou afro-brasileiro.
Sinal dos tempos. Estamos vivendo no Brasil, em matéria de religião, uma
situação que não deveríamos viver de modo algum. A ampliação de novos
grupos religiosos e o recrudescimento de velhos grupos abre o nosso país
para questões até pouco tempo estranhas. Duas delas: a questão da
religião diante do Estado (caso 1) e a da religião diante da cultura
(caso 2).
Quanto à primeira questão, notamos os grupos que não entendem que o
Brasil é uma sociedade plurirreligiosa e que o Estado é laico. O Estado é
neutro quanto à religião exatamente para garantir que indivíduos e
grupos adotem e expressem as crenças que escolherem.
Por isso mesmo caberia ao Estado, talvez, incentivar na escola pública a
história das religiões, mas não a aula de religião (ainda que plural)
ministrada por um militante de igreja. Há vários editais, inclusive no
Estado do Rio, em que se pede do professor que irá ministrar aulas de
religião uma carta de uma "autoridade competente" em religião. Ou seja, o
professor tem de vir indicado por um pastor, padre ou coisa do tipo.
Isso é inadmissível.
Quanto à segunda questão, vemos os grupos religiosos se indispondo
contra várias práticas das quais os seus fiéis não deveriam ser
privados.
O Estado laico, garantindo neutralidade, e uma cultura plural criam
manifestações artísticas de várias ordens e, assim, criam elementos que
permitem que todos nós possamos usufruir dessas manifestações apenas
como arte, não necessariamente como religião.
A Bíblia ou o Corão podem ser lidos sem que com isso o leitor seja um
devoto ou queira se tornar devoto. Ter curiosidade por religião e ler
seus documentos é antes de tudo saber usufruir da cultura.
Assim, de modo similar, se a TV viesse a apresentar uma telenovela
religiosa -como já fez várias vezes-, isso não deveria ser motivo para
que qualquer grupo de religião distinta emergisse pedindo de seus fieis o
boicote ao canal em questão.
Ou seja, aquele líder religioso que pede boicote não está infringindo a
lei, mas está desrespeitando, certamente, a inteligência de seus fiéis.
Voltando ao primeiro caso e articulando-o ao segundo. Permitir que uma
escola pública tenha aula de religião ministrada por um devoto, e não
por um historiador das religiões (ou alguém com formação equivalente), é
exatamente retirar da escola a capacidade ser o elemento que iria, em
uma situação normal, ensinar aos estudantes esta verdade: não há
cabimento em alguém implicar com uma novela de TV por motivos
religiosos.
Nossas autoridades legais e a maior parte dos intelectuais estão fazendo
vista grossa sobre essas duas questões. Tudo está indo bem no Brasil,
uma vez que estamos podendo consumir. Caminhamos para lugares escuros em
leis e em cultura, e estamos quietos porque também temos podido ir aos
shoppings.
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