Casa
Rosada, sede do poder argentino: o correspondente Ariel Palacios
partilha sua compreensão do povo, da sociedade e da cultura dos
“hermanos”
Jornalista e correspondente internacional Ariel Palacios traça o perfil dos nossos vizinhos em livro
A voz da Argentina na Globo News tem sotaque carregado de influências
várias, que traem o cosmopolitismo de quem fala e o tom grave
inconfundível. É a voz de Ariel Palacios, 46 anos. Nascido em Buenos
Aires, Palacios se mudou para o Brasil aos três anos. Criado em
Londrina, com passagens por Curitiba, São Paulo e Madri, o jornalista,
que também é correspondente de O Estado de S. Paulo em solo portenho, se
diz brasileiro. Talvez a sonoridade de seus boletins seja uma boa
metáfora para o argentino, que ele próprio define como um povo
multifacetado. Um povo complexo como o tango, com claros e escuros que
bailam freneticamente. Ritmo, densidade, fatalismo, autoironia fina. O
drama como jeito de ser, a paixão quase que como ideologia.
No livro Os Argentinos, Palacios usa à perfeição uma musicalidade da narrativa tipicamente argentina mesclada a informações precisas, por vezes divertidas e por outras quase trágicas. Faz a radiografia dos nossos vizinhos, desvenda-lhes a identidade. Uma entre tantas definições jocosas: “O argentino é aquele que para cada solução... tem um problema”. O bordão é dos próprios argentinos, craques em rir de si mesmos e forjadores de vasto repertório de anedotas bem pouco indulgentes, “de Quiaca a Ushuaia” (algo como “do Oiapoque ao Chuí”).
Quem conhece Palacios sabe que ele faz jus à tarefa que lhe foi atribuída pela editora Contexto, para a coleção Povos & Civilizações. Primeiro: ninguém melhor que o autor para assumir o papel do brasileiro que explica o argentino. E o espírito é o mesmo. Leveza no estilo, o conteúdo encorpado em mais de 300 páginas muito bem editadas, e por aí vai. O capítulo dedicado ao assado (o nosso churrasco) é delicioso, o do tango é profundo, os da história e da política local, angustiantes, assim como o da economia ciclotímica, semelhante ao bandoneon, com suas retrações e expansões, aberturas e intervenções.
Sobre o assado: “Os intestinos na grelha – denominados na Argentina de chinchulines e com sabor levemente amargo – costumam horrorizar a maioria dos não argentinos. Trata-se do intestino delgado do boi, sem lavar por dentro. Ou seja, come-se a tripa com o conteúdo interno intacto. Em outras palavras, a grama digerida pelo boi. Nesse ponto ainda não se trata de esterco, pois este só chega a esse formato final no intestino grosso. Dessa forma, não há por que alarmar-se. Os argentinos não são coprófagos.”
Palacios faz graça, reveste a informação em um texto elegante. O tom muda quando ele envereda pela história argentina, tratada em rápidas pinceladas. O discurso mais bruto e direto teve até data para ocorrer: depois dos anos 1930, quando a Argentina trocou a fleuma europeia pela decadência, com a elite tendo de se desfazer dos palacetes que pululam ainda hoje pela elegante Buenos Aires, e o país deixando o glamour gradativamente. Vieram golpes militares, Perón em distintas fases, faces e colorações, a Guerra Suja, o conflito das Malvinas, Carlos Menem. Um país de vocação agrária perdeu o rumo e viu o vizinho Brasil se industrializar.
Um dos méritos de Palacios é misturar a característica pessoal de ser um inquieto furungador por natureza e a condição profissional de ser um talentoso repórter por formação. Um curioso, enfim. Seu texto traz a memória do jornalista e o gosto pela história. Pesquisas minuciosas, experiências próprias vividas com o olhar brasileiro e muito conhecimento fazem do livro um documento especial.
Curiosidades como a disputa pelos vinhos de La Rioja, cidade com mesmo nome na Argentina e na Espanha. O melhor doce de leite, uruguaio ou argentino? Sobre o Brasil, a rivalidade é desmitificada. Até no futebol. Palacios sustenta que a rixa maior se dá com a Grã-Bretanha, por conta da disputa pelas Ilhas Malvinas, ocorrida 31 anos atrás.
Há momentos hilários, como o capítulo que trata do sexo na Argentina, ou o do portunhol. E há trechos utilitários, como os glossários e as dicas de cafés – o livro pode ser usado como obra de consulta, para quem quiser viajar bem orientado.
Palacios tem o hábito de superdimensionar situações, deixando-as caricaturais para desvendar-lhe o que têm de insólitas. Exemplo: “O governo da cidade de Buenos Aires anunciou em 2011 que, diariamente, os cães portenhos deixam nas ruas da capital do país uma média de 35 toneladas de dejetos. Isso equivale a 12.775 toneladas por ano, superior em 20% ao peso da Torre Eiffel (...).”
A experiência de ser correspondente internacional é uma imersão, uma interpretação permanente e intensa do cotidiano alheio. Quem passou por isso sabe o quanto é uma vivência diferenciada, o quanto se entranha no profissional e no homem, dois entes que se retroalimentam. Até que o alheio deixa de sê-lo. E essa é a atividade de Palacios há quase duas décadas. Não é apenas viver no lugar. É viver o lugar. Entendê-lo, estudá-lo. Pelo menos é o que fazem os bons (ou ótimos, no caso) correspondentes.
O país que o autor apresenta tem o paradoxo como um traço idiossincrático. É onde vive a maior comunidade judaica da América Latina e onde aportaram nazistas aos magotes depois da II Guerra.
O tango é o ritmo, a linguagem e a síntese cultural. “Uma forma de caminhar pela vida”, diz Jorge Luis Borges. “Um pensamento triste que pode ser dançado”, descreve o poeta e letrista Enrique Discépolo. Ao falar do tango, aliás, Palacios explica que o gênero mudou como mudou a cidade de Buenos Aires, o berço do qual o ritmo ganhou o mundo. É uma bela síntese: “O próprio portenho de 1870 – criollo ou negro – não é o mesmo de 1910, italiano e judeu. Muito menos o portenho de 2010, com forte presença de pessoas do interior do país e imigrantes peruanos, paraguaios e bolivianos”.
No livro Os Argentinos, Palacios usa à perfeição uma musicalidade da narrativa tipicamente argentina mesclada a informações precisas, por vezes divertidas e por outras quase trágicas. Faz a radiografia dos nossos vizinhos, desvenda-lhes a identidade. Uma entre tantas definições jocosas: “O argentino é aquele que para cada solução... tem um problema”. O bordão é dos próprios argentinos, craques em rir de si mesmos e forjadores de vasto repertório de anedotas bem pouco indulgentes, “de Quiaca a Ushuaia” (algo como “do Oiapoque ao Chuí”).
Quem conhece Palacios sabe que ele faz jus à tarefa que lhe foi atribuída pela editora Contexto, para a coleção Povos & Civilizações. Primeiro: ninguém melhor que o autor para assumir o papel do brasileiro que explica o argentino. E o espírito é o mesmo. Leveza no estilo, o conteúdo encorpado em mais de 300 páginas muito bem editadas, e por aí vai. O capítulo dedicado ao assado (o nosso churrasco) é delicioso, o do tango é profundo, os da história e da política local, angustiantes, assim como o da economia ciclotímica, semelhante ao bandoneon, com suas retrações e expansões, aberturas e intervenções.
Sobre o assado: “Os intestinos na grelha – denominados na Argentina de chinchulines e com sabor levemente amargo – costumam horrorizar a maioria dos não argentinos. Trata-se do intestino delgado do boi, sem lavar por dentro. Ou seja, come-se a tripa com o conteúdo interno intacto. Em outras palavras, a grama digerida pelo boi. Nesse ponto ainda não se trata de esterco, pois este só chega a esse formato final no intestino grosso. Dessa forma, não há por que alarmar-se. Os argentinos não são coprófagos.”
Palacios faz graça, reveste a informação em um texto elegante. O tom muda quando ele envereda pela história argentina, tratada em rápidas pinceladas. O discurso mais bruto e direto teve até data para ocorrer: depois dos anos 1930, quando a Argentina trocou a fleuma europeia pela decadência, com a elite tendo de se desfazer dos palacetes que pululam ainda hoje pela elegante Buenos Aires, e o país deixando o glamour gradativamente. Vieram golpes militares, Perón em distintas fases, faces e colorações, a Guerra Suja, o conflito das Malvinas, Carlos Menem. Um país de vocação agrária perdeu o rumo e viu o vizinho Brasil se industrializar.
Um dos méritos de Palacios é misturar a característica pessoal de ser um inquieto furungador por natureza e a condição profissional de ser um talentoso repórter por formação. Um curioso, enfim. Seu texto traz a memória do jornalista e o gosto pela história. Pesquisas minuciosas, experiências próprias vividas com o olhar brasileiro e muito conhecimento fazem do livro um documento especial.
Curiosidades como a disputa pelos vinhos de La Rioja, cidade com mesmo nome na Argentina e na Espanha. O melhor doce de leite, uruguaio ou argentino? Sobre o Brasil, a rivalidade é desmitificada. Até no futebol. Palacios sustenta que a rixa maior se dá com a Grã-Bretanha, por conta da disputa pelas Ilhas Malvinas, ocorrida 31 anos atrás.
Há momentos hilários, como o capítulo que trata do sexo na Argentina, ou o do portunhol. E há trechos utilitários, como os glossários e as dicas de cafés – o livro pode ser usado como obra de consulta, para quem quiser viajar bem orientado.
Palacios tem o hábito de superdimensionar situações, deixando-as caricaturais para desvendar-lhe o que têm de insólitas. Exemplo: “O governo da cidade de Buenos Aires anunciou em 2011 que, diariamente, os cães portenhos deixam nas ruas da capital do país uma média de 35 toneladas de dejetos. Isso equivale a 12.775 toneladas por ano, superior em 20% ao peso da Torre Eiffel (...).”
A experiência de ser correspondente internacional é uma imersão, uma interpretação permanente e intensa do cotidiano alheio. Quem passou por isso sabe o quanto é uma vivência diferenciada, o quanto se entranha no profissional e no homem, dois entes que se retroalimentam. Até que o alheio deixa de sê-lo. E essa é a atividade de Palacios há quase duas décadas. Não é apenas viver no lugar. É viver o lugar. Entendê-lo, estudá-lo. Pelo menos é o que fazem os bons (ou ótimos, no caso) correspondentes.
O país que o autor apresenta tem o paradoxo como um traço idiossincrático. É onde vive a maior comunidade judaica da América Latina e onde aportaram nazistas aos magotes depois da II Guerra.
O tango é o ritmo, a linguagem e a síntese cultural. “Uma forma de caminhar pela vida”, diz Jorge Luis Borges. “Um pensamento triste que pode ser dançado”, descreve o poeta e letrista Enrique Discépolo. Ao falar do tango, aliás, Palacios explica que o gênero mudou como mudou a cidade de Buenos Aires, o berço do qual o ritmo ganhou o mundo. É uma bela síntese: “O próprio portenho de 1870 – criollo ou negro – não é o mesmo de 1910, italiano e judeu. Muito menos o portenho de 2010, com forte presença de pessoas do interior do país e imigrantes peruanos, paraguaios e bolivianos”.
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Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp 23/03/2013
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