Nada mudou tanto quanto a medicina; sangue, ossos e até órgãos artificiais crescem em laboratórios
Da janela tudo parecia igual. Na rua, a mudança era grande. Os carros
não tinham pilotos. O ar parece limpo. As pessoas, sujas. E magérrimas.
Dava para confundi-las com moradores de rua.
Elas aparentam ter uns 30 anos, me surpreendi ao saber que tinham mais
de 70. Estavam na flor da idade, pois a expectativa de vida ultrapassava
os 120.
Meu intérprete diz que a magreza contribuía para a longevidade e que a
"sujeira" era biotecnologia, explorando micro-organismos na pele e
cabelo e protegendo-os de agentes nocivos como álcool e sabões. Ele é um
robô, tem a forma de um papagaio. Pousado no ombro, me faz parecer um
pirata.
Apesar de ridículo, não me deixariam sair sem ele -por segurança,
disseram, mesmo que o crime físico estivesse quase erradicado por ali.
"Come-se muito pouco, alguns nem dormem", continua ele, enquanto eu
comia um prato com cheiro e gosto estranhos, que parecia lasanha de
micro-ondas.
Era carne sintética, tecnologia que multiplicou a produção de alimentos
para atender os 9 bilhões. Boa parte da comida era geneticamente
modificada, reciclada ou criada em laboratório.
Disseram que era nutritiva e livre de toxinas, o que pareceu bom demais para ser verdade.
É difícil descrever o impacto de tantas máquinas inteligentes,
onipresentes, no cotidiano. De roupas climatizadas e sempre limpas a
fachadas de prédios mutantes, tudo parece piscar e pular.
Não há computadores, celulares ou óculos. O software acompanha seu
usuário na forma de "foglets", névoas de nanomáquinas que se configuram
conforme a necessidade das pessoas. Não me acostumei com elas, por isso o
papagaio.
Ele me conta das mudanças ocorridas nas três últimas décadas. Quase toda
instituição teve de se reformular depois que surgiram a energia
gratuita e a nanotecnologia, limpando o ar, reciclando o lixo e gerando
um volume quase infinito de recursos.
Nada mudou tanto quanto a medicina. Sangue, ossos e órgãos artificiais
crescem nos laboratórios, são adaptados ao DNA de seus usuários e
trocados desapegadamente em funilarias humanas. Privadas identificam
doenças e previnem cânceres. Neurocosméticos rejuvenescem a pele.
Teme-se a eugenia, armas e drogas perigosas.
O papagaio, fui descobrir, me vigiava. Visitante de outra época, sem histórico, eu era imprevisível.
Em 2043 boa parte da vida pessoal é monitorada, não se fala em
privacidade. Os espaços comuns são de propriedade privada, toda
comunicação é registrada e interpretada.
Muito do que chamam de memória é só armazenamento sem reflexão.
Infraestruturas lembram de tudo, e como não esquecem, não perdoam.
Perdidas, muitas pessoas parecem sós, frágeis, infantilizadas,
formatadas por mecanismos de busca e objetos de consumo.
Alguns, cansados das inconsistências humanas, recorrem a relações
artificiais com máquinas. Do sexo enriquecido aos bebês que nunca
crescem, tudo é artificialmente sereno.
O Mundo Novo parece tão Admirável quanto assustador. No "Tec", que tem
60 anos, continuamos a analisar o impacto da tecnologia no que teimamos
em chamar de natureza humana.
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