Marcelo Gleiser*
No passado, essas questões eram atribuídas só a ações sobrenaturais, produtos da intervenção divina
O tema de hoje é vasto demais para uma coluna: lidar com as três origens
é trabalho para muitas vidas inteiras e, mesmo assim, sem a menor
promessa de sucesso.
Mesmo que bem diferentes, tratando de partes da ciência com metodologia e
princípios diversos, as três origens têm pontos em comum.
É deles que trato hoje e nas próximas duas semanas, mesmo se
superficialmente. Volta e meia escrevo sobre eles nestas páginas e nos
meus livros.
O primeiro ponto em comum é que, no passado não muito distante, as três
origens não eram consideradas questões abordáveis pela ciência. A origem
do Universo, da vida e da mente eram atribuídas a ações sobrenaturais,
produtos da intervenção divina.
Que divindade seria essa depende da sua fé. Mas, em religiões distintas,
só uma entidade que transcende o espaço e o tempo poderia criar o
Cosmo, que existe no espaço e no tempo. Apenas uma entidade imortal
poderia criar a vida e só uma entidade onisciente poderia dar
inteligência às suas criaturas.
Não é, portanto, surpreendente que se encontre tanta resistência quando
cientistas afirmam que estão prestes a responder a essas questões sem
intervenção divina.
De acordo com a visão científica, a origem do Universo, da vida e da
mente são processos naturais, que obedecem a leis e a princípios
materiais. O fato de eles serem complexos e ainda obscuros não
compromete o fato de as questões terem cunho científico e não religioso.
O não saber é a mola propulsora da criatividade humana.
Mas até que ponto a ciência pode resolver essas questões? Vamos por
partes, tratando de uma por semana. Talvez a mais "fácil" seja a origem
da vida: longe estamos de compreendê-la, mas nos parece que a transição
da não vida para a vida obedeceu a uma complexificação crescente das
reações químicas que ocorriam na Terra primitiva: sistemas de compostos
químicos tornaram-se autossuficientes e, isolados em protocélulas, foram
capazes de absorver energia do ambiente e de se reproduzir de forma
eficiente.
Sem dúvida, ainda não sabemos como isso se deu e, provavelmente, nunca
saberemos exatamente o que ocorreu na Terra bilhões de anos atrás. No
máximo, produziremos cenários viáveis de como a vida pode ter surgido
aqui, dadas as condições na vigente Terra primitiva. Talvez seja
possível recriar a vida no laboratório, mas não saberemos se foi assim
que a vida surgiu aqui -a menos que seja demonstrado que só há um
caminho bioquímico para a vida, o que acho pouco provável.
O que torna a questão da origem da vida mais "fácil" (ou mais tratável) é
o nível de controle que temos sobre ela. Cientistas podem simular
sistemas bioquímicos no laboratório (e vêm fazendo isso com resultados
extraordinários), tanto começando com moléculas simples, como
aminoácidos, como usando já o RNA e DNA do nosso código genético e
testando suas propriedades em condições diversas.
Usando células, podem retirar material genético até chegar à célula
"mínima" capaz de ser considerada viva. Mesmo que o caminho exato que a
vida seguiu na Terra seja inacessível, a questão da origem da vida é
tratável, mesmo se complexa e interdisciplinar.
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