Qual o interesse em agitar o passado do papa Francisco e não discutir a grave crise da Igreja?, questionou Leonardo Boff.
Rio de Janeiro, Brasil, 19/3/2013 – O teólogo brasileiro Leonardo
Boff, expoente de correntes progressistas da Igreja Católica
latino-americana, não acredita nas denúncias que descrevem o papa
Francisco como colaborador da última ditadura argentina.
Em entrevista à IPS, Boff admite que se trata de um “tema polêmico”,
com versões contraditórias. Contudo, ele prefere confiar nas declarações
de notórios defensores dos direitos humanos da Argentina, que negaram
qualquer vínculo de Jorge Bergoglio, o novo papa, com o regime militar
que governou a Argentina entre 1976-1983.
Boff, figura fundamental da Teologia da Libertação, olha com
esperança para adiante e confia em que Francisco honre sua condição de
jesuíta e seja “enérgico e radical” contra a epidemia de pedofilia e a
corrupção que infestam a condução católica atualmente.
IPS: Como interpreta a “descentralização” que implica a eleição de um papa latino-americano?
LEONARDO BOFF: A Igreja central, isto é, o Vaticano e
as Igrejas europeias, se sentia humilhada e envergonhada pelos
escândalos criados dentro de seus próprios muros. Assim, elegeram alguém
de fora, com outro ânimo e outro estilo de conduzir a Igreja. No
Terceiro Mundo vivem 60% dos católicos. Já era hora de se ouvir melhor
estas igrejas. Já não são igrejas-espelho da Europa, mas igrejas-fonte,
com seu rosto e suas formas de organização, geralmente em redes de
comunidades. Para mim, mais do que um nome, Francisco é um projeto de
Igreja pobre, próxima do povo, evangélica, amante e protetora da
natureza hoje devastada. São Francisco é um arquétipo deste tipo de
Igreja. Com o papa Francisco se inaugura uma Igreja do terceiro milênio:
longe dos palácios e em meio aos povos e às suas culturas.
IPS: A que atribui a preferência por Bergoglio diante do cardeal brasileiro dom Odilo Scherer?
LB: Scherer era o candidato do Vaticano, onde
trabalhou e fez muitos amigos. Porém, defendeu publicamente a cúria e o
Banco do Vaticano, criticado por todos, inclusive muitos cardeais. Isto
desatou uma discussão pública que o queimou. Além do mais, não teria
sido bom para a atual situação da Igreja. É conservador e autoritário.
Teria sido um Bento 17.
IPS: Na Argentina, a eleição de Bergoglio foi criticada por
sua suposta cumplicidade no sequestro de dois sacerdotes jesuítas
durante a ditadura.
LB: Sei que, em geral, a Igreja argentina não foi
profética em denunciar o terrorismo de Estado. Apesar disto, houve
bispos como (Enrique) Angelleli, que morreu de maneira terrível, (Jorge)
Novak, (Jaime) De Nevares e Jerónimo Podestá, entre outros, que
claramente foram críticos. Com referência a Bergoglio, prefiro acreditar
em Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, e na ex-integrante da
Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Graciela Fernández
Meijide), que qualificam essa acusação de calúnia. Não encontraram nem
uma vez o nome de Bergoglio em documentos ou denúncias. Pelo contrário,
salvou muitas pessoas escondendo-as no Colégio Máximo de San Miguel.
Além disso, vai contra seu caráter já conhecido, de homem forte e também
terno, pobre e que continuamente denuncia as injustiças sociais
existentes na Argentina e a necessidade de justiça e não de filantropia.
Por fim, o que interessa não é Bergoglio e seu passado, mas Francisco e
seu futuro.
IPS: Por que o senhor passou por alto neste tema em suas declarações iniciais?
LB: É um assunto polêmico e se deve conhecê-lo bem.
As versões são contraditórias. Não falo de coisas sobre as quais não
tenho clareza. E me pergunto: qual é o interesse de alguns grupos em
levantar esta questão e não discutir a grave crise da Igreja e seu
sentido diante da crise da humanidade. Talvez, isto eu concebo, poderia
ter sido mais profético, como foram no Brasil o bispo Hélder Câmara e o
cardeal Paulo Evaristo Arns. Mas aqui o Estado é laico e separado da
Igreja. Na Argentina, o catolicismo é a religião do Estado, o que
dificultou, mas não impediu, que houvesse resistência e denúncias de uma
parte da Igreja.
IPS: Omissão não é pecado?
LB: A questão não é responder se é, ou não, pecado.
Isto é assunto de religião. A questão é política, e para mim é de que
lado está a pessoa: do lado dos pobres, dos que sofrem desigualdades
perversas? Ou do statu quo que quer o crescimento ilimitado e
uma cultura de consumo? Em 1990, havia 4% de pobres na Argentina. Agora
são 33% (segundo dados não oficiais). Bergoglio ficou do lado dessas
vítimas e vive cobrando justiça social. Se não entendemos isto, estamos
nos desviando do ponto central.
IPS: O senhor atribuiu a escolha do nome de Francisco “à
desmoralização” de uma “Igreja em ruínas” por vários escândalos. Como
deveria se expressar na prática esse nome?
LB: Ele dá sinais de outro tipo de papado, sem
símbolos de poder nem privilégios. Um papa que paga suas contas no
hotel, que vai em um simples automóvel rezar na basílica de Santa María
Maior e visita escondido seu amigo, o cardeal Jorge Mejía, que ficou
doente em Roma… São gestos que o povo entende. Estou certo de que, com
referência aos pedófilos e aos crimes financeiros, será mais jesuíta do
que franciscano, enérgico e radical, porque tal como está a Igreja, não
dá para continuar.
IPS: O novo papa acredita ver a “mão do diabo” em questões
como a despenalização do aborto e do casamento homossexual na Argentina e
se choca com o governo por isso. Devemos antecipar um papa mais ou
igualmente conservador nestes temas doutrinários?
LB: Estes temas estão proibidos pelo Vaticano.
Ninguém pode se afastar da postura oficial. Espero que Francisco, como
papa, habilite uma longa discussão de todos estes temas, porque são
parte da vida real do povo e da nova cultura que está nascendo,
especialmente a questão do celibato e da moral sexual. Isto não
significa que a Igreja renuncie às suas posturas de fundo, mas que se
discuta dentro do campo democrático, e terá que respeitar o que for
democraticamente decidido. O bom da democracia é que impede imposições
de cima para baixo e permite que sejam ouvidas opiniões diversas, ainda
que não sejam vitoriosas. Envolverde/IPS
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Reportagem por Fabiana Frayssinet, da IPS
Foto: Daniela
Pastrana/IPS
(IPS)
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